quarta-feira, dezembro 07, 2005

Crónica da ronda 4/Dez (Batalha)

A chuva espreitava na noite fria, o inverno chega sem pedir licença - é a hora do frio, era também a nossa hora. Aos poucos aconchegamo-nos à porta da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, comentava-se o que cada um tinha trazido - muita comida, desta vez, café quente também, e um "brilhozinho nos olhos" traduzido em vontade de ajudar. A oração devolvia-nos as forças que o frio tinha roubado, e empurrava-nos cheios de ânimo para dentro dos carros. Começava a ronda.
Primeira passagem rápida pelo Palácio (voltamos a não encontrar ninguém, nem vestígios sequer, desistimos de voltar - o segurança de um dos prédios confirmou: àquela hora dificilmente "o" encontraríamos); seguimos para a Sé - teria voltado o Sr. E.? estaria à nossa espera o mar de gente que nos surpreendeu na semana anterior?
Ninguém, de novo (o Sr. E. não voltara - bom ou mau sinal?). Esperámos dentro dos carros até que apareceu o C., com o mesmo ar afável, apesar de ter ficado sem direito às refeições numa casa de apoio em Gaia. Irá esta semana à segurança social pedir comprovativos da sua situação social - foi espantoso saber que o C. está desde Março do ano passado sem consumir drogas (com a ajuda preciosa dos medicamentos), e ainda perceber-lhe uma certa repugnação pela vida de toxicodependente que não pretende voltar a viver. Seguimos para Alexandre Herculano - nem suspeitávamos das surpresas à nossa espera...
A "vivenda Silva" estava arrumada, sem ponta de cartão ou cobertor, no seu lugar o M. explicava que passou a morar na mesma pensão que o J. e a C., quarto pago por um-advogado-amigo-de-um-tio-que-resolveu-ajudá-lo... "a vida vai dar uma volta de 360 graus" anunciava, esperançoso ("esperemos que não", pensei eu, na minha parca sabedoria trigonométrica...). O J. tinha ido morar para o prédio em frente (a descrição que nos fizeram do local foi tudo menos apaziguadora). Depois de alguns berros lá desceu, ensonado, renovado por fora (inexplicavelmente com roupa novinha em folha, assim como o M.) e também por dentro: tinha ligado à mãe, que lhe enviasse a certidão de nascimento (para a morada de uma vizinha) a fim de se inscrever na Segurança Social. Faltou descobrir se foi só a chuva que o empurrou para o assustador prédio, ou se mais alguma coisa sucedeu para que tomasse iniciativa de começar a pensar em sair da rua.
O J. e a C. queixaram-se de ameaças feitas pela dona da pensão quando soube que tinham tentado inscrever-se na Segurança Social...notámos, novamente, um tom de revolta nas palavra do J. que deu a entender não querer ficar lá por muito mais tempo - não conseguimos descortinar o porquê... A C. ía a uma entrevista esta semana e insite no passe dos STCP - Matosinhos tem mais oferta de trabalho, sobretudo cafetaria e cozinha, áreas em que se sente mais à vontade.
Apareceu também o F., bem disposto e de barriga cheia, já não quis comer nada. Sentado nos degraus estava o Sr. J. (de passagem?), bêbado que nem um cacho, barafustando contra tudo e todos - muitíssimo mal humorado! Está na rua há 20 anos...caso sério.
Espreitamos a esquina, estava lá o A. embrulhado em cobertores. Aceitou café e bolos (os bolos que o Rodrigo levou foram preciosos!). Continua motivado para o Porto Feliz que começaria na 3ª feira, dia 6, com o E.. Prometeu aparecer dali a 10 dias, depois do tratamento - já pensa num futuro emprego no estrangeiro, "longe daqui", não vá o diabo tecê-las...(esperemos que corra tudo bem!)
No Siloauto só encontramos "mobília"...passamos no JN, também não encontramos ninguém. Rumamos, então, ao Foco..
O M. fazia anos, 30! Enquanto o comprimentávamos fomos repentinamente interpelados por um rapaz supostamente pertencente a uma instituição de apoio a toxicodependentes... a minha ingenuidade deu-lhe 2 euros (para fúria do M., que já o conhece e sabe com quantos dentes nos mentiu). Depois de alguma chantagem emocional ("os piores é que têm sempre sorte...!") e com o dia de anos jogando a seu favor, lá ficou com um cachecol, umas meias, e umas luvas - não se livrando da oportuna reprimenda da Mónica (durante a semana tinha já recebido vários presentes nossos, era altura de parar a resmunguice). Depois saiu disparado na sua bicicleta - a ressaca já tinha avançado demais - e com o Natal à porta o melhor era mesmo não parar, não pensar muito (na namorada, nos filhos...).
No Aleixo a noite é sempre mais fria e ventosa. As caras enrugadas e os corpos magros surgem como formigas irrequietas. Cumpre-se o ditame: "depois do Aleixo nada sobra". E com os últimos sacos se vão os bolos do Rodrigo, os cafés, as últimas palavras de consolo, os últimos desabafos - as últimas forças - e, "fechando o ciclo", a oração, que bebemos juntos como chá quente à volta de uma Fogueira.


joão bateira

3 comentários:

Anónimo disse...

João, apreciei a sensibilidade que tua crónica me transmitiu!

Anónimo disse...

João, li a tua crónica: é suave, cativante, profunda, poética...e adorei os teus apontamentos de humor!

Dou também os meus parabéns aos outros cronistas: é difícil passar p o papel as experiências vividas em cada ronda!!

Anónimo disse...

obrigados!