sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Crónica das Aldeias - 21.02.2009

Mais um sábado rumo às “nossas” aldeias…
Desta vez mais alegres, novas chegadas, novos voluntários.
A par do almoço, partilha-se um pouco de nós, um pouco do sol, antes de nos dividirmos.
Eu e o Diogo ficamos em Candemil.

“Ando devagar porque já tive pressa, levo este sorriso porque já chorei demais…”
Lembro-me desta música enquanto passeamos com a D. Aurélia. Passo certo, pelos altos e baixos do caminho, cara alegre, boas palavras, como se o que não é bom pesasse demais para ser carregado. Vai falando, contando episódios dos seus noventa e três anos, perguntando pelos nossos pais, nossos avós, dando sustento à verdade de “recebe mais, quem mais partilha”! E nós vamos também partilhando. “Sempre fui bem disposta, mas às vezes as pessoas não sabiam e só percebiam quando falavam mais comigo!”
Findas as voltas, rumamos à próxima casa, D. Alda. Pelo caminho encontrámos a D. Maria do Carmo, a aproveitar o sol. Depois de a sentarmos melhor, ficou um “até já”.

A gripe ainda não foi de vez. D. Alda levanta-se num ápice, fazendo a oferta de praxe - um cházinho. A cara vai-se alegrando, entre mágoas, choros e cantigas tudo se leva, a quem foi brindado com a inteligência, a acutilância e o humor. Não se esquecem os que vão passando…
Al – O João está bom? Qual é a morada dele? E o D. João II?
Passa-se dos contratempos do Natal, para as cantigas e a conversa rola…
Al – Acho que os cegos têm muito jeito para a música!
Aur – É para apagar a nostalgia. (…)
Nesta visita ouviu-se Frei Hermano da Câmara (FHC), a cassete já gasta ainda alegra. Lembram, da rádio, histórias que nos vão contando como parte do seu dia.
Al – Numa entrevista, ouvi um repórter perguntar ao FHC: - “Não sente saudade do tempo dos bailes, de andar a tocar nos salões?”, FHC - “Nessa altura tinha muitos aplausos, mas chegava a casa e sentia-me muito só.”
E a propósito disso vai cantarolando “Entreguei-me todo a Cristo, nunca mais me sinto só”.
D. Maria do Carmo ainda lá estava, apesar do sol menos quente. Fomos para dentro de sua casa, à velocidade que o corpo deixa. Entretanto já somos cinco. Caras que se animam, trocas de palavras entre “tias” e “meninas”, aproximando histórias, acelerando a tarde.
Ficou um até breve, um novo brilho que trazemos e temos esperança de deixar.
A mim ficou uma de tantas canções que a cassete passou nessa tarde…

“As nossas capas
rotas, velhinhas
Todas negrinhas
Também no ar
São andorinhas
Que se preparam
Para emigrar.”

Isabel Teixeira Gomes | Aldeia de Candemil

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Crónica da Ronda da Boavista - 15.02.2009

Preparação dos sacos... Oração inicial... Partida...

Partida para uma ronda em que o carro estava lotado. Erámos 5! E fomos ao encontro com todos aqueles que já fazem parte das nossas vidas.

Hoje não estivemos com a D.F pois no domingo passado disse-nos que iria a Torres Vedras. Mesmo assim passamos pelo parque de estacionamento onde costuma estar para deixar um saco de ternura, tal como tinhamos combinado.

Depois seguimos para o Lar das irmazinhãs dos Pobres onde já é costume deixar o pão que sobra depois de fazermos os sacos para os sem-abrigo que visitamos. Passamos o saco do pão para o lado de dentro do lar e fomos ao encontro do Sr. G. Estava bem disposto e falou-nos do seu carro que já anda em circulação. Também nos falou das novas mezinhas que tem e que está a fazer para o coração.

Entretento a D. G avisou que estava na paragem a nossa espera e que estava doente, pelo que fomos logo ter com ela. Quando a encontramos disse-nos que se sentia muito cansada e como apareceu logo o seu autocarro não falamos muito mais.

Uma vez que estavamos no Bom Sucesso aproveitamos para estar com o Sr. Al e com o JP. O sr. Al já acabou o seu trabalho comunitário e falou-nos do filho que não lhe ligou desde que foi para o Brazil. Também nos mostrou um cartão que tinha com a fotografia do filho. O JP continua a não ir ao Centro de Emprego e como já vem sendo hábito ao Domingo não vai à metadona.

Após estas visitas fomos terminar a ronda no Campo Alegre. O Sr. Z já estava a dormir por isso não falamos muito. Aceitou um copo de chá mas não aceitou o nosso saco pois já lhe tinham dado muita coisa. Com o Sr. A falamos de futebol embora ele não tenha ouvido o relato pois está sem rádio. Também incentivamos o Sr. A a fazer uma limpeza ao local onde dorme pois o sítio está com muito lixo espalhado.

E assim terminamos a ronda com um momento de partilha e com os desejos de uma boa semana para todos.

Manuela Seixas

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

Crónica das Aldeias - 24.01.2009

Vimos cantar as Janeiras | Boas festas desejar | Que tenha muita saúde | No ano qu'está a entrar. Foi com esta letra e a música de "Mãe querida, mãe querida" que o grupo de voluntários das aldeias fez sucesso no Marão. De início todas (e todas por que eram 10 voluntárias femininas) se mostraram apreensivas com a música um tanto ou quanto melancólica. Mas depois entrou no ouvido e "entranhou-se". Após o habitual almoço partilhado, seguiram-se os ensaios que não duraram mais do que 30 minutos. Talvez tempo de menos para quem nunca tinha cantado tais melodias. Mas o resultado foi glorificador. Partimos para a primeira aldeia, Candemil, com um plano de cantarmos duas a três músicas em cada casa, ou seja, não estaríamos mais do que 15 minutos em cada local. E, mesmo assim, a tarefa ia ser difícil, pois teríamos de chegar a 14 casas, de preferência ainda com voz e ânimo para alegrar as pessoas que visitamos e de modo a não entrarmos pela noite dentro (leia-se pelo jantar das pessoas adentro, o que habitualmente começa pelas 18h30/19h).
Mas o Homem planeia e Deus troca-nos as voltas. Chegamos à casa da Dona A., que habitualmente está bem-disposta, e encontramo-la muito cabisbaixa. Para além da gripe, estava sem telefone há uma série de dias. Isolada do mundo e da família. Logo nos dispusemos a ajudar. Uma chamada para os familiares do Porto para ver como estavam de saúde e um telefonema para o operador de modo a solucionar o problema. A família estava bem, Dona A. descansou. Até já se levantou da cama para oferecer um cálice de vinho do Porto.
Com o operador é que foi mais complicado. "É o sistema, diriam alguns". A chamada não surtia resultados. Sugeri que o restante grupo continuasse as visitas e fiquei ali pelo menos 20 minutos à espera que me atendessem o telefone! Descrevi o problema, "o telefone não faz chamadas e ao atender não se ouve." Sugestão do lado de lá da linha e de quem não conhece a realidade do Marão. "Não tem outro aparelho para substituir de modo a apurarmos se é do aparelho ou da linha?!" Ao que respondi calmamente, embora remoída por dentro: "Não, não temos aparelho. Têm de enviar um técnico aqui para ver o que se passa, pois a senhora vive sozinha e este é o único meio de contacto com o mundo."
E lá marcaram, com algum custo, a vinda do técnico (que segundo a Dona A. me disse a posteriori esteve lá logo no início da semana).
A Dona A. agradeceu profundamente e eu levei o sorriso e as palavras no coração.
Seguimos viagem. De Candemil para Ansiães. Aqui não cantamos na casa da Dona R., porque não entra música dentro dela desde que o marido e o filho se foram. Ainda assim, recebeu-nos bem, como sempre. A Dona O. estava dentro de casa, o que não é habitual, por causa do frio. Escutou-nos alegremente, ainda, que os ouvidos já a atraiçoem. Com um pulinho já estávamos com a Dona C., a nossa "cantora-mor". Infelizmente não estava nos seus dias, "está fraquinha", comentavam os visitadores de Ansiães. Apesar disso, ouviu-nos atentamente, muitas vezes batendo palmas e, ainda, arranjou força para "gritar": "levem, levem, levem uma laranja."
Basseiros foi a paragem seguinte. Não encontramos duas senhoras em casa. Às vezes acontece, ou porque vão para casa dos filhos, ou porque se deslocam para os seus afazeres. Mas a Dona C. estava em casa. A visita levou calor ao seu coração que ainda lembra o marido, falecido há dois anos, com lágrimas nos olhos. "Gostei muito, muito obrigada" repetia insistentemente, perguntando se tinha de dar alguma coisa como é tradição nas Janeiras. "É claro que não!" (pelo menos material, porque emocional já estava a dar muito). A Dona D., estava junto à lareira para se aquecer. Encontrava-se adoentada e agradecendo a visita foi-nos pedindo para não cantarmos muito, não estava com muita disposição.
Dali rumamos a Bustelo. A Dona P. também não estava em casa. Seguimos para a casa da Dona C. e da irmã, a Dona M. Na varanda fomos entoando os cânticos festivos que chamavam a atenção de quem passava na rua "estas meninas não parecem deste tempo", ouviam-se algumas vozes. Seguiu-se a casa da Dona F. que, ao fim de uma música, já tinha entrado no ritmo e acompanhava-nos nas cantorias. A casa do Senhor A. e da Dona E. foi a última a ser presenteada. Fechamos ao rubro, com as gargantas ainda afinadas, a dar conta de todo o repertório do dia. E a abrir a porta aos curiosos que iam entrando para perceber o porque das guitarras e das canções. O dia terminou com a oração e partilha em Bustelo, com o frio a arrefecer o corpo, mas com o coração quente de tanta alegria. Para o ano, esperamos, há mais.

Claúdia Gonçalves

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Crónica da Visita aos Imigrantes - 08.02.2009

Mais uma visita à UHSA…e, no entanto, nunca será possível dizer que qualquer uma delas é apenas 'mais uma'…

Há um ano (um ano!) que o nosso grupo faz o que pode para amenizar, por pouco que seja, o clima de sofrimento que se abate sobre as vidas daqueles que vêem os seus sonhos destruídos e os seus esforços e esperanças reduzidos a nada pelo 'sistema' duma 'civilização avançada'… Esperanças de pessoas de todo o mundo que arriscam tudo o que têm por uma oportunidade no nosso abençoado Portugal, de que tanto nos queixamos, vendo-o como um porto de abrigo, um ponto seguro a partir do qual esperam poder partir para uma nova viagem, começar uma nova vida, iniciar uma nova luta que, no final de contas, nos é comum a todos…

Há um ano que, a cada mês (agora distribuídos em dois grupos), cada um de nós visita os imigrantes que, por algum motivo considerados ilegais, são apanhados pelas autoridades portuguesas por todo o país e aprisionados na Unidade Habitacional de Santo António.

É sensivelmente há um ano que tentamos com eles partilhar um bocadinho de nós mesmos e, quem sabe, fazer um bocadinho parte do mundo daqueles a quem dedicamos este bocadinho das nossas vidas, que às vezes parece tão insignificante mas que em determinados momentos se revela parte de um surpreendente milagre de que todos fazemos parte…

Entre desilusões e alegrias, momentos de emoção e de euforia, já tivemos oportunidade de guardar nas nossas almas e de enriquecer as nossas existências com a alegria e boa disposição de marroquinos e brasileiros, com o respeito e cavalheirismo de ucranianos e bielorrussos, com a calma e simpatia de indianos e paquistaneses, com talentos escondidos e olhares alegres mas profundamente marcados pelo sofrimento de israelitas e bósnios, o ritmo no sangue dos luso falantes dos vários pontos de África ou o à vontade e desembaraço (às vezes demais:) de nigerianos e croatas…

Entre sorrisos e caras de caso há sempre algo que nos marca: a frustração perante a impossibilidade de fazer o que quer que seja além do pouco que tentamos fazer e que às vezes nos leva a duvidar da utilidade do nosso esforço, e, por outro lado, a alegria incomparável que é ouvir de alguém, cujos olhos marejados exprimem uma gratidão indescritível, um "Obrigado, hoje fizeram-me feliz" que nos faz crer que vale sempre a pena dar tudo o que temos, por pouco que seja, porque recebemos sempre muito mais.

Sejam quais forem as dificuldades com que nos deparemos, serão sempre momentos como este que nos darão força para continuar. Momentos como os que tivemos na visita de hoje… Depois de um mês de ausência (por razões alheias à nossa vontade) são visitas como a última que nos fazem ter a certeza do quanto tudo isto significa…

Éramos 4 à porta da UHSA…4 mulheres à chuva à espera que as portas da 'casa' que já tão bem conhecemos se nos abrissem para mais uma 'aventura' (que o é, sempre) no mundo dos sonhos desfeitos… Sem saber muito bem o que fazer perante mais de 20 utentes de várias nacionalidades que já sabíamos que estariam lá dentro, cuja intimidade íamos, de certa forma, invadir durante as duas horas que se seguiriam, entramos, quase a medo, munidas com o bom humor da nossa nova 'sub-coordenadora', a simpatia da nossa algarvia de serviço, a calma da nossa menina alentejana e, claro, a bela da minha viola desafinada ás costas! :)

Não esperávamos nada, só que a visita corresse bem…e correu melhor ainda!

Para começar, fomos recebidas de braços abertos por um grupo que, de imediato, se reuniu à nossa volta pronto a escutar tudo o que tivéssemos a dizer. Nunca tal nos aconteceu até hoje!

Um senhor angolano tratou de chamar toda a gente que na altura se encontrava no salão principal para 'ouvir as meninas'. Só uma pessoa não se juntou ao grupo (e foi especialmente doloroso ver que o facto causou desconforto entre os residentes…), mas de resto todos eles se sentaram juntos esperando pelo que pensavam que seria um espectáculo de variedades ou coisa que o valha… Ainda bem que não pagavam bilhete… Saiu dali um verdadeiro assassinato da canção 'Don't Give Up'… mas foram os próprios que nos pediram uma 'modinha' portuguesa, e então lá nos safamos com uma 'Laurindinha' improvisada mas que conseguiu animar o nosso 'público' a tocar e a cantar connosco, com batuque africano à mistura e tudo!

Depois da introdução, em que também os 'obrigamos' a cantar o nosso já mais que conhecido 'No Xukurelá' – foi especialmente bonito ver os chineses, que raramente participam, a torcer a língua o mais que puderam para nos acompanhar:) –, seguimos com o jogo do novelo – que não chegou para todos, tantos eram os participantes! :) – e, feitas as apresentações, seguimos diferentes caminhos consoante a tarde correu…

Adorei ver o grupo que se juntou para jogar às cartas e chamou (!) a Cláudia para os acompanhar numa sueca; a animação com que quase se destruíram as prateleiras da sala durante o jogo de pontaria conduzido pela Amélia; a expressão de felicidade dos argelinos enquanto ensinavam à Sónia algumas entoações em línguas diferentes:); a forma como se divertiram os chineses com a minha falta de jeito para pronunciar palavras em chinês ou para lhes explicar o que era um dragão…que vergonha…mas rimo-nos tanto!... :) Não esquecerei também as raparigas bósnias, que só não dançavam porque o pai duma delas havia falecido pouco tempo antes… a confiança que demonstraram ao partilhá-lo comigo… A alegria de um croata a cantar o 'La shate mi cantare' a plenos pulmões enquanto o 'grupo dos cd's' fazia uma lista de 'discos pedidos' para a próxima visita…

Quase todos eles, incluindo aqueles com quem não conseguimos estabelecer uma maior proximidade ao longo das duas horas que ali passamos, se deslocaram à porta da 'nossa' salinha, e criaram ali um verdadeiro 'corredor do adeus' quando saímos… Só se ouvia 'Au revoir's, 'Adiós' e até 'Taitié' (que é chinês, já aprendi!) … Tenho a certeza que nenhuma de nós se importaria de atrasar aquela despedida por mais umas horas…

Tenho certeza que todas nós saímos de lá mais motivadas que nunca para enfrentar as dificuldades que se nos depararem ao longo deste caminho que escolhemos percorrer… Por aqueles que não têm outro remédio senão percorre-lo, fazemos por acreditar que os pequenos gestos podem, realmente, fazer a diferença para eles…

Para nós fazem, sem dúvida…
Ana Pinho

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Crónica da Ronda da Batalha - 25.01.2009

Uma noite de chuva… Encontrar o Sr. D. na rua, com aquela idade é mesmo de partir o coração, mas tem de ser. Falamos um pouco, aproveitei a oportunidade para o tapar com um cobertor – que bem lhe fez, aconchegado. Pediu para que o deixasse dormir e seguimos viagem para a próxima paragem.

O P. no seu novo sítio que não deixa de ser bastante original e acima de tudo bastante quentinho – nada de chuvas, mas… obviamente que um armário suspenso não é o melhor local para pernoitar! O P. está a aguardar a ajuda da assistente social apesar de se mostrar bastante impaciente. O outro "pequeno problema" que o incomoda bastante é a excessiva quantidade de cabelo pelo que fomos incumbidos da árdua tarefa de arranjar uma máquina de cortar cabelo a pilhas e um gorro (e "já agora" umas meias bem quentinhas). A promessa de melhor tentativa para arranjar todas estas coisas ficou a certeza de regresso na semana a seguir.

O Sr. F. estava bastante confuso e a falar com "os seus amigos"…. Conversamos durante uns minutos, conversas bastante vagas e confusas, pois o Sr. F. estava bastante aluado, mas sabemos que aqueles momentos são bastante preciosos.

Já o Sr. M. continua na expectativa de ter o resultado dos exames, os medicamentos não injectáveis para ir ao encontro da família em África… Temos ajudado o quanto possível – aguardamos notícias de uma nova semana com mais e boas notícias.

Sem dúvida vamos para casa com o coração cheio por saber que levamos um bocadito de cada um de nós em noites tão sombrias como estas.

Sabina Martins

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

1ª Crónica das Famílias - Janeiro de 2009

O mês terminou e nós iniciamos, nesta primeira crónica, o começo de um ciclo de registos mensais da vertente das Famílias. Em cada mês haverá uma partilha dos dias que decorreram, do trabalho que foi feito, da entrega oferecida e dos passos dados pelas pessoas que ajudamos. Serão, à semelhança das outras crónicas do FASrondas, espaços de testemunhos “com medida”, ou seja, relatos onde a privacidade e a intimidade das pessoas faladas não poderá ser colocada em causa. Em cada mês focaremos de modo mais aprofundado um dos casos de Família, até que todas as situações “vos sejam apresentadas” e além da reflexão sobre o estado geral de todos os acompanhamentos.

As Famílias são uma vertente muito particular onde lidamos ainda mais de perto com as pessoas ajudadas. A regularidade, o tempo e continuidade das visitas estabelecem linhas de especial aprofundamento afectivo e de particular empenho estrutural. Acompanhamos situações diversas e, em cada uma delas, integramos parte de uma crónica que é inteira, imensa e única. Todas possuem momentos variados, difíceis e crescentes, de empenhos necessariamente mais assertivos, mais esforçados e “conquistazinhas”, efectivamente… gigantes.
Neste momento somos 31 voluntários, 13 padrinhos e 13 Famílias. Acompanhamos o E., a B., o Z.M1., a D.E. e Sr. F., o Sr. F.A., o Sr. O., a M., o Z.M2, o M., a Le., a D.R. e Sr. D. e D.C., a Li. e a D.G.. A Fi., a Fe. e o Sr. E constituem três novos casos a tomar início durante o mês de Fevereiro. O grupo tem margem de manobra para crescer e alargar os braços da ajuda mas procuramos ir dando um passo de cada vez, com o ritmo imposto pela realidade do que somos e das pessoas com quem assumimos compromissos de cuidado, ajuda e Amor. Há uma natural evolução nos laços e nos afectos estabelecidos que exige aprofundamento e descoberta permanente se queremos estar, com a verdade, ao lado da “nossa família”.

Comecemos com o nosso querido Z.M2. O Z.M2 é um senhor com quase meio século de idade que a ronda da Areosa conheceu nas visitas de domingo à noite, no final do ano de 2006. Nos finais de 2007 entendeu-se tratar de um caso que estaria em condições para integrar a vertente das Famílias. As conversas dominicais haviam permitido o estabelecimento de um contacto sistemático e o Z.M2 demonstrava-se interessado num acompanhamento ainda mais próximo. Com muitos anos de consumo de drogas e de vida na rua este era o momento ideal para darmos esse passo já que ele oferecia provas de começar, afirmativamente, um novo reinício na construção da sua vida. Em Abril de 2008 a Sara G. e a Inês B., voluntárias das Famílias, eram-lhe apresentadas e, nesse encontro, tomava início a história de um laço novo.
Esta é uma narração de um “caso mais feliz”, sendo que, apesar de um ou outro momento mais difícil, o Z.M2 tem mantido grande consistência no tratamento da desintoxicação e na estabilidade individual, familiar e social. Entenda-se, com isto, que os problemas e os desafios têm surgido! Mas que, mais do que isso, o Z.M2 tem demonstrado o essencial para “a felicidade”: a fidelidade aos seus compromissos e objectivos pessoais e colectivos. O positivismo e desportivismo constantes o empenho com que luta e investe no plano de vida que para si mesmo estipulou e a humildade com que solicita uma mão quando está mais fragilizado, tirando partido das ajudas que tem a graça de ter disponíveis e das pessoas próximas que muito o amam, têm sido autênticas armas de conquista.
Em 9 meses o Z.M2. avançou com aprovação no tratamento com metadona, cumpriu assertivamente e pacientemente as regras dos estabelecimentos onde habitou, mudou de estadia, alcançou melhorias na sua vida pessoal, reconquistou confiança dos familiares, alargou contactos com eles, procurou ocupação em cursos, formações ou outras actividades laborais, manteve-se o mais afastado possível de ambientes antigos que não considera positivos, ajudou um velho amigo na venda de algumas miudezas da sua loja enquanto não obtinha respostas às candidaturas e programas em que se inscreveu, estabeleceu graus de conquista de autonomia e disciplina, e foi, entre passinhos pacientes e optimistas, reconstruindo a sua auto estima, estimulando o prazer pela vida e redescobrindo o sabor de cada coisa. Em Agosto de 2008 foi, finalmente, contactado para prestar serviços de manutenção de jardins numa Junta de Freguesia! Este foi um momento especialmente marcante pois permitiu-lhe (re)sentir-se útil, iniciar um novo ciclo de autonomia e responsabilidade financeira e transitar para uma outra fase social do seu processo de reinserção social, em ambientes íntegros e salutares. Presentemente aguarda, ansiosamente e com promissoras expectativas, pela renovação do seu contrato laboral! O Z.M2 é cumpridor e responsável. Este facto tem sido sistematicamente comprovado pelo seu comportamento nesse trabalho, no seu rigor face às regras das instituições onde viveu e no cuidado, carinho e preocupação que demonstra sentir pelos outros.
A Sara e a Inês entregaram-se verdadeiramente a esta nova pessoa nas suas vidas e apaixonam-nos sistematicamente com os seus testemunhos. Em férias ou indisponibilidades forçadas contactam-no através de telefonemas ou envio de mensagens. Encontram-se em sítios habituais para ouvirem e falarem. As histórias do presente e do passado saltam, correm, interpelam-se e projectam-se no futuro, ao ritmo de conversas fluidas e agradáveis entre os três. Falam de música, cantores e concertos, livros, notícias e artigos de jornais, abordam temas religiosos, política, actualidades… Conquistaram, nele, espaços de confiança e naturalidade. Sabem do que gosta, por isso há espaço para as coisas que recolhe nas suas colecções, para toda a espécie de raças de cães, para o futebol, o Sporting, o cinema, o café daquele sítio, a feira tal, o jantar em determinado lado. Ajudaram-no em mudanças, constipações, consultas, currículos e dias mais complicados. Com ele aprendem sobre o funcionamento de um CRI e conversam sobre este último processo da sua desintoxicação. O contacto com as assistentes sociais, e outros técnicos da sua rede social, é efectivo, sendo elas uma ajuda útil no esclarecimento de alguns pontos simples.
O Z.M2 vai-se revelando extremamente sensível em relação ao que o rodeia e às necessidades e carências que observa. É com curiosidade que questiona sobre o voluntariado e as diversas formas de contribuição e ajuda. Por isso no final do ano passado foram, os três juntos, para uma campanha do Banco Alimentar! – experiência que o Z.M2 adorou…
A Sara e a Inês são uma espécie de ponte. Como outras estabelecem-lhe ligações “com o lado de cá”, ligações que foram e são por ele solicitadas e cultivadas. Alimentam-lhe o ânimo, a esperança e o positivismo. Dá-se. Dão-se. Troca-se. E, no seu tempo e caminho, o Z.M2 vai brilhando… e fazendo brilhar.
“Não houvesse pessoas maravilhosas no Mundo… seria Natal todos os dias… Obrigada por serem dessas pessoas…” (Z.M2)
Raquel Henriques