quarta-feira, dezembro 21, 2005

Uma crónica diferente

Quando se fala em sem-abrigos uma pessoa tem geralmente uma ideia mas não sabe exactamente que sensações escolher para sentir. Se de pena, se de enfado, se…. São dois extremos que se tocam e na mesma altura, precisamente. E, por isso, não se deve querer decidir entre uma ou outra ou até pensar em mais alternativas.
Pensar e trabalhar num universo como este é tanto mais sedutor que embrenharmo-nos num mundo brilhante e sumptuoso onde as facilidades acontecem, numa rotação ainda mais acelerada e estonteante.
A vida na rua corre sem pressas, sem expectativas. É um palco, por excelência mas não o nosso. Nosso de quem lê este texto num computador, entre paredes que estão a ser pagas a um banco por 30 anos de uma vida.
A rua é um palco, uma espécie de parateatro. Um teatro paralelo àquele que se paga para ver uma quantidade de gente a actuar em cena, sincronizadamente. Gente que está morta, que finge vida mas está morta. Como as flores. As flores de uma jarra que são tão bonitas mas onde a beleza provém da morte a que pertencem: porque as flores estão cortadas no pé, mortas. Vão mirrar daqui a bocadinho. E as pessoas do palco também vão para casa, quando acabar a peça de hoje. E o pano fechar-se-á. Mas a rua não tem tecido suficiente para fechar uma cortina onde caibam todos os sem-abrigo. Neste sentido, têm muito mais liberdade que os actores do palco do quotidiano.
Num palco onde não se ouvem os passos dos actores ao entrar em cena por o solo ser revestido de linóleo macio e num palco onde não se ouvem os tacões dos actores por estes não possuírem sapatos sequer.
Num palco em que se enfrenta o público com receio de se enganar na deixa, de falhar ou num palco onde se enfrentam as pessoas com o estigma de quem já falhou e que, por isso, já não têm receio de voltar a falhar, porque para eles, eles sabem que falharam.
Num palco onde uma mulher recolhe uma flor do chão e agradece e num palco onde uma criança oferece o mais querido dos peluches a um rapaz que apenas o conhece da rua, por apenas gostar do seu nome, porque sentiu empatia. Este gesto que comove o rapaz e o faz querer informar-se na Unesco de como ir fazer voluntariado para Timor ou Angola, onde julga ser mais necessário lá, que neste palco frio da rua.
Num palco onde se bate palmas à actuação virtuosa do violinista russo de nome impronunciável e um palco onde se bate o dobro das palmas a alguém que decidiu cortar o cabelo para ir a uma entrevista de emprego.
Num palco onde, no final de uma boa actuação, se recebe em dinheiro ou num palco onde num final de dia de domingo se recebe em géneros.
Enfrentar a noite com uma camisa colada à pele, num chão que, para ser o mais parecido possível com o linóleo do outro teatro, se utiliza a caixa de cartão desmembrada, esparrachada, ocupando toda entrada do multibanco da zona. Multibanco onde se levanta dinheiro para a entrada do teatro ou onde se deitam, na noite, a própria noite. A noite que arrefece o cobertor que se recebeu nesse domingo de uma carrinha desconhecida que pára onde quer que estejam esses actores de rua. Uma carrinha apadrinhada pela noite, com duendes lá dentro: mágicos.com roupas, palavras, comidas, cobertores, palavras quentes que ajudam a passar melhor essa noite de domingo.
Domingo. Talvez seja esta a única expectativa desses actores. Que chegue o domingo para mostrar o João Paulo de 11 anos de gravata e sapatos a condizer. É uma espécie de agradecimento, esta maneira de nos receberem.
Num palco onde não se sabem quem são os actores ou quem é público, cruzam-se os lugares. E há domingos onde os personagens são uma massa uniforme, homogénea que actuam, sincronizados, num teatro de conformidade e segurança comuns, debaixo das mesmas paredes, virados para as mesmas cadeiras vazias, resquícios de espectadores que se levantaram das cadeiras e decidiram actuar, também, ao mesmo tempo, no palco.

Ronda dos Sem-Abrigo – 18 Dec 2005 Lia Bettencourt Gesta

4 comentários:

Anónimo disse...

Crónica maravilhosa!!!

Penso que nos conseguiste transmitir, aquilo que já senti quando fazia a ronda ao domingo com a Mafalda e com o Filipe em 2004, e que deves ter traduzido o que cada um dos queridos "rondeiros" sente no seu íntimo quando faz a ronda aos domingos.

Espero que nos continues a presentear com as tuas belíssimas crónicas, esta sem dúvida mudou o meu dia!

Bjs

Luísa Cardoso

Anónimo disse...

Bem, incrível!!!!
bateu tds as crónicas até agora!... (desculpem-me os outros :)).
uma metáfora mt bem escolhida para o mundo que vivemos todos os domingos (e não só) na rua. todas estas nossas idas, domingo após domingo, tornaram-se num vício, um vício em ajudá-los porque sem dúvida q eles precisam de nós. mas, tb, nós precisamos mesmo muito deles!...
bjs a todos e, como n podia deixar d dizer, até domingo!

Ana Barbosa de Carvalho

Anónimo disse...

Bem, incrível!!!!
bateu tds as crónicas até agora!... (desculpem-me os outros :)).
uma metáfora mt bem escolhida para o mundo que vivemos todos os domingos (e não só) na rua. todas estas nossas idas, domingo após domingo, tornaram-se num vício, um vício em ajudá-los porque sem dúvida q eles precisam de nós. mas, tb, nós precisamos mesmo muito deles!...
bjs a todos e, como n podia deixar d dizer, até domingo!

Ana Barbosa de Carvalho

Anónimo disse...

Obrigado por nos teres feito sorrir:)...