quarta-feira, abril 27, 2011

Crónica Imigrantes Março 2011

Centro Comunitário de São Cirilo, 15h30, a Valentina já lá estava, a Sónia chegou pouco depois. Este fim-de-semana adiantamos os relógios uma hora. Sol mas com ameaça de alguns chuviscos, nada que nos demova da nossa vontade de estar com as pessoas que se inscreveram para visitar a exposição de Darwin no Jardim Botânico.
Não faço parte da vertente, aceitei o desafio de acompanhar o grupo nesta primeira visita, apenas conheço os relatos dos contactos com os Imigrantes feito pelos meus pares.
Do grupo que nos irá acompanhar fazem parte quatro ucranianos e um guineense. Os primeiros já estão no país há algum tempo e falam um pouco de português, o último está cá por motivos de saúde do filho e dele próprio, mas sempre com um sorriso nos lábios embora não perceba quase nada da língua.
Questiono-me sobre quem são estas pessoas, com uma cultura diferente da nossa, língua, crenças, etc… como é estar num país que não é o nosso, numa comunidade que desconhecemos, numa família re-inventada. Este estar não é por opção, como quando viajamos em férias ou trabalho, ou vamos estudar para outro país, é uma obrigação, uma luta por mais dignidade e melhores condições de vida. É a esperança num amanhã melhor a quilómetros de casa, daqueles que lhes são mais queridos, de tudo aquilo que faz parte da nossa entidade enquanto seres enraizados num dado local.
Surpreende-me a abertura destas pessoas, que num domingo à tarde resolvem acompanhar um grupo de desconhecidos, para verem uma exposição.
Surpreende-me a capacidade de adaptação às dificuldades e a um modo de vida completamente diferente.
Surpreende-me a entrega e a partilha.
Surpreende-me a forma de comunicar e utilizar a linguagem não verbal, o sorriso. Nuns casos mais contido dado os hábitos culturais, noutros mais expansivo.
E, assim o olhar fala. Por gestos.
Percebo claramente que embora a linguagem verbal seja muito importante na nossa inter-acção com os outros seres humanos, há uma forma de comunicar invisível, que também se aprende, e que por vezes, não é devidamente utilizada, que é o AMOR.
No fim do dia, voltámos para casa ainda mais gratas por todos aqueles que nos rodeiam, e estão física e emocional muito perto, e por aquelas pessoas que num domingo à tarde, longe de casa, e dos seus, se entregaram e partilharam um pouco da sua vida naquela vista à exposição de Darwin.
Enquanto escrevo isto recordo toda aquela tarde, desde o percurso que fizemos, das pequenas conversas, e sobretudo os olhares de quem espera fazer parte e acredita num amanhã melhor!
Sara Gonçalves

quarta-feira, abril 20, 2011

Crónica Março 2011 FasFamilias

Muito Pouco

Todo o percurso, quase uma viagem, ainda sem porto de chegada, quase sem casa de partida, mas todo o percurso, até longo, por vezes penoso, mas todo o percurso portanto que partilhei com a R. pode ser descrito em poucas palavras. Destas, a mais fiel talvez seja precisamente essa: "pouco".

Foi muito "pouco" o meu papel na vida da R., foi quase insuficiente a minha presença para a tornar um bocadinho melhor, foi "pouco" o meu tempo, "pouca" a minha disponibilidade, "pouca" a minha iniciativa, "pouco" o meu cuidado e a minha assistência, "pouca", muito "pouca" até a minha capacidade para fornecer a tal cana que o voluntário tanto ouve falar, "pouca" afinal a minha diferença, se é que alguma na vida da R..

Agora sei no entanto que a dimensão da ajuda que prestamos, se "pouca", "muita" ou "assim-assim", não depende apenas de nós. Aprendi que "pouco tempo" se torna muitas vezes "essencial" apenas por se tornar "insubstituível" e que "pouca iniciativa" se torna muitas vezes "instrutiva" apenas por promover o "ser independente". Aprendi que "a tal cana" se encontra muitas vezes em sítios tão ocultos, impossíveis de alcançar, mas que é a viagem para a alcançarmos que se torna, tantas vezes "a nossa pesca". Aprendi, muito recentemente, que o "pouco" de que falo se pode tornar "enorme" apenas por ser "possível".

E que é apenas por ser possível, que estes "poucos" se tornam "tantos" na presença e com a ajuda sempre de quem ajudamos.

Por isso sei, agora, e tal como foi lido há algum tempo numa reunião mensal da vertente: "a caridade faz bem a quem a pratica mas nem sempre a quem precisa verdadeiramente de ser ajudado". Se para mim a experiência com a R. foi um "POUCO" de aprendizagem e de apreensão de consciência do mundo desumanizado que vivemos, espero que para a R. o "POUCO" que foi tenha sido pelo menos "POSSIVEL".

Inês Sá

quinta-feira, abril 14, 2011

Crónica FasFamilias Fevereiro 2011

"Ser voluntário, ajudar os outros é bem mais complicado do que alguns possam pensar: é necessário estar presente sem concordar e entender, é preciso apoiar mesmo quando sabemos que esse não será o melhor caminho. É assim a nossa história, uma história com voltas e reviravoltas constantes de idas e chegadas."

Recorrendo às palavras da Sofia e da Cecília, outas voluntárias, torna-se mais fácil transmitir aquilo que sentimos após um ano de partilha e compromisso. Apesar da vontade de Dar/Ajudar ser muita, nem sempre se torna suficiente para termos forças para semanalmente pôr mãos à obra… sobretudo em momentos que não encontramos nos adultos lá de casa a disposição de nos ter presentes ou o reconhecimento de que as crianças, e muitas vezes até mesmo eles, precisam de nós… dar o nosso tempo, carinho e amor para nós não é sacrificio, mas, por vezes, desilude-nos um pouco sentirmos que nem sempre somos bem-vindos…

Mas a verdade é que, embora a D.F. e a L. precisem também de ajuda, as principais razões para que todas as semanas nos desloquemos ao Viso são quatro: E. , P. , C. e N. Eles sim, fazem valer a pena o nosso esforço! Foi esse o objectivo a que nos propusemos e é esse que temos tentado cumprir, e quanto a isso não podíamos estar mais satisfeitos… apesar de a visita ser curta e o tempo passar a voar, ela é preenchida não apenas por lições e trabalhos, ou por conversas e obrigações, mas também por abraços, beijinhos e muita brincadeira .

Apesar de idades muito semelhantes, as quatro crianças são todas diferentes, o que para nós se revelou mais um desafio, descobrir e aprender a conviver com cada uma delas.

O E., é o mais novo e o mais agitado. Nas nossas primeiras visitas era o miudo que se demonstrava mais carente de atenção, tornando-se dificil trabalhar com ele, hoje em dia está mais calmo nas abordagens que nos faz. É um menino inteligente e extremamente doce, que com as nossas visitas tem demonstrado interesse gradual em aprender e brincar connosco.

A P. é das quatro crianças aquela que mais mostrou que a nossa ajuda se tem tornado importante. Recordamos a P. como uma criança com muitas dificuldades de aprendizagem, hoje temos uma P. capaz de lidar com essas dificuldades, reconhecendo as suas fraquezas e tentando ultrapassa-las, há mais vontade de trabalhar e mais esforço para se auto-corrigir.

O C., é o mais infantil no que diz respeito a comportamentos, isso talvez se deva ao facto desta criança ser a mais afectada pelo meio envolvente, é a que procura mais carinho da avó, tornando-o no menino mais mimado. Apresenta sérias dificuldades em exprimir-se oralmente e necessita de recorrer a terapia da fala para corrigir esse problema.

O N., o mais velho, é o menino a quem são atribuídas mais responsabilidades, sendo o menos acarinhado e sendo alvo de comentários menos apropriados por parte da D.F. e L.. Inicialmente ignorava a nossa presença nas visitas, talvez por ser mais timido, contudo, gradualmente aprendeu a conviver connosco, conseguindo fazer-se com que participe em tudo o que desenvolvemos.

As pequenas evoluções de cada um, e sobretudo, os laços criados com estas quatro crianças, são a força que temos e precisamos para ter vontade de continuar.

Nuno Rodrigues e Catarina Barbosa

segunda-feira, abril 04, 2011

Crónica da Ronda de Santa Catarina 20.03.2011

As rondas não são feitas de sacos, de roupas, de comida, de tempo. As rondas são feitas de pessoas. Daqueles que nos esperam debaixo de cobertores puídos de sonhos destruídos, de rosto sujo de indiferença, de olhar cabisbaixo e palavras contadas. De nós que os visitamos de sacos cheios de reservas e esperanças, pensamentos doces, lágrimas salgadas e o pão-nosso de cada dia. Começa por ser um domingo da semana, com pessoas que mal conhecemos e que nos recebem com apreensão. Com o frio e com a chuva, tornamo-nos pessoas movidas por uma obrigação. Com a rotina, e sem nos apercebermos, algo toma conta de nós. De uma forma subtil, que incomoda de tão íntima, tornamo-nos pessoas comprometidas com outras pessoas. Criamos relações. Já não há o meu eu do trabalho, o de casa, o dos amigos, o dos sem abrigo. Aquelas pessoas passam a fazer parte da nossa pessoa. Aquelas pessoas deixam de ser sem-abrigo. A sua casa é na minha preocupação, na minha vontade de saber como correu a semana, no chã que preparamos com cuidado antes de sair de casa, nos objectos que fazem falta, e nos esforçamos por encontrar em conjunto; nos telefonemas aflitos, na discussão de cada caso antes de entrarmos de novo na vida deles. Assim como eles entraram de rompante na nossa. Esta história é feita de compromissos. Comigo próprio, mas sobretudo com as pessoas que me acompanham. Com 4 pessoas de idades diferentes, trabalhos diferentes, gostos e ideias diferentes, mas algo em comum: este domingo, estas horas em que nos tornamos uma equipa com uma missão. Com uma relação. Podemos não ser amigos, como diz a Ana, nem ir jantar à casa do Rodrigo na Foz. Não arranjamos voluntários surfistas para Natália, e não sabemos conduzir como o Hugo, mas existe algo mais profundo que nos une: uma relação re-criada todos os domingos, entre nós…e os outrora sem-abrigo.

Vanessa Pereira