segunda-feira, julho 03, 2006

Crónica da Ronda de 02.07.2006 ("ronda experimental")

Às 22:10h começámos a oração inicial. A caridade, a encíclica "Deus Caritas Est" e a leitura da 2ª Carta aos Coríntios de São Paulo, da liturgia eucarística deste Domingo, foram o mote. São Paulo apelava aos Coríntios para partilharem os seus excedentes com os habitantes de Jerusálem que se encontravam em carisitia. O papa Bento XVI, exorta os jovens a darem-se voluntáriamente em actos de caridade, como estas rondas que nós fazemos todos os Domingos.

A ronda experimental partiu com o João, a Maria Antónia e eu. O primeiro destino era um dos frutos da ronda de prospecção feita na 4ª-Feira passada: Na pç. Coronel Pacheco, a D. A. Lá estava ela: Conversava sobre a sua saúde com uma funcionária reformada de um centro de saúde onde está inscrita. A D. A. está com uma tosse persistente e teimava em não ir ao médico, nem fazer exames. Prometeu-nos ir hoje ao "BCG" fazer uma micro-radiografia aos pulmões. Ela já nos tinha dito que é muito doente, dos pulmões (desde que nasceu), da espinha, do coração e da cabeça. Aceitou o nosso saco no final, mesmo tendo recebido, enquanto com ela estávamos, o jantar de um senhor que já tem por hábito fazê-lo todos os dias. Parece-nos que ela se encontra muito acompanhada por vizinhos preocupados durante a semana.

Partimos para o 5º Bairro Fiscal do Porto, na rua dos Bragas. Lá estava o senhor que tínhamos visto na 4ª. Demorou a reagir aos nossos cumprimentos, mas lá acordou. Estava de costas e assim se manteve, dizendo que não precisava de nada e que não queria que deixássemos comida. Ficou o propósito de lá voltarmos um dia mais cedo, pois pode ter tido só uma má reacção a ter-mo-lo acordado. Seguimos para a pç. da República, onde uns taxistas, na prospecção que fizémos, nos tinham dito dormir um casal ao fim-de-semana.

Além de uns casais nos bancos do jardim, não víamos ninguém a dormir. Até que surge a G. Na referida ronda de 4ª-Feira, já a tinhamos visto, mas nunca imaginámos tratar-se de uma sem-abrigo. Estava sentada num banco de jardim muito encasacada e cheia de roupa, mas ao ver-nos endireitou as costas e destapou a cabeça. A conversa foi-se desenrolando e nós fomo-nos identificando com ela, tal era a lucidez e a "normalidade" da aparência e do discurso... Estava com fome e fartou-se de agradecer e elogiar o nosso trabalho. Ficámos muito comovidos com aquela conversa, porque sentimos, nitidamente, que podia ser um de nós a estar do lado de lá!

Depois de partilharmos estas sensações entre nós, seguimos para a rua Alexandre Herculano e a afamada "Vivenda Silva", novamente habitada. Lá estava a D. M. C., que nos veio ajudar a arrumar o carro, o companheiro, sr. A. A. e o amigo, sr. J. M. Além deles havia outro sem-abrigo que parmaneceu a dormir todo o tempo que lá estivémos. O sr. A. A. também esteve sempre deitado, pois estava adoentado. Provavelmente febril, com certeza com tosse e especturação. Tem sido visitado pelos Médicos do Mundo, mas recusa ir a um hospital ou entrar numa ambulância. Todos têm problemas de alcoolismo e vontade em se tratar. Iam esta semana vêr se conseguiam o encaminhamento para um centro de desintoxicação.

Avistámos a ronda de Santa Catarina na pç. da Batalha e a paragem seguinte foi com o sr. J. na rua 31 de Janeiro. Está a dormir na entrada de outra loja, porque foi repetidamente assaltado onde estava. É uma pessoa muito bem disposta e aberta. Juntou-se-nos, entretanto, a ronda da Batalha. Continuámos a conversa com o sr. J. que nos contou a vida toda. Está muito melhor da perna, só usando a muleta como segurança, já que não precisa dela para andar.

A última paragem foi em conjunto com a ronda da Batalha e tinha sido combinada por eles. Foi na Sá da Bandeira com o sr. P. Muito contente apresentou-nos o amigo com quem está a dormir na rua, o L. Foi uma visita rápida, mas muito animada.

Terminámos em frente à igreja da Sr.ª de Fátima, as 3 rondas: a nossa, a da Batalha e a de Santa Catarina. Oração final e partilha do caso G., foram o prato forte.

(O caso G. acompanha-me ainda. Acabei de desligar um telefonema com ela. Conseguimos empregá-la hoje numa confeitaria da Zn. Ind. do Porto. Parece-nos caso único "de sucesso" em todo o nosso trabalho e estamos radiantes. A emoção leva-nos a rezar ainda mais e a pedir para que corra tudo bem. A próxima etapa é tirá-la da rua. Ainda não tem onde dormir e prepara-se para voltar a pernoitar na pç. da República, no mesmo banco. Nós é que dificilmente descansaremos enquanto assim fôr.)

Sinto que só por esta ronda de Domingo, todas as nossas rondas, tudo aquilo que temos feito, ganhou um novo sentido. Isto dá-nos uma felicidade enorme!


Nuno de Sacadura Botte

4 comentários:

pedro cruz disse...

É incrível perceber como a Encíclica é tão clara e tão dirigida a nós. Deixo um apelo forte a que a leiam - e releiam!

Diz-nos o Papa Bento,

"Desejo aqui deixar uma palavra de particular apreço e gratidão a todos aqueles que participam, de diversas formas, nestas actividades. Tal empenho generalizado constitui, para os jovens, uma escola de vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem não simplesmente qualquer coisa, mas darem-se a si próprios. À anti-cultura da morte, que se exprime por exemplo na droga, contrapõe-se deste modo o amor que não procura o próprio interesse, mas que, precisamente na disponibilidade a « perder-se a si mesmo » pelo outro (cf. Lc 17, 33 e paralelos), se revela como cultura da vida."

Anónimo disse...

Neste relato sobressai o caso da "G" que é um dos que me parece requerer solução urgente. A "G" é ocasional e episodicamente uma sem-abrigo mas não é marginal. Para impedir que o venha a ser tem de se lhe encontrar um local de abrigo, ainda que seja de recurso, até reorientar a sua vida. O que parece inadmissível é que tenha de continuar a passar a noite num qualquer banco de jardim...

Vasculho a relação de soluções e pouco vejo: será que "A Casa da Rua" a pode receber para já?

Desta relação constam alguns "Centros", "Institutos", "Unidades"... Não há dormitórios, camas, casas...

O Voluntariado não tem hipóteses de responder de imediato. O País gasta-se em teoria e burocracia...
Já temos bombeiros florestais. Não era hora de criar também "Bombeiros Sociais"?

A questão que coloco meio a brincar não me tem largado ultimamente. A "Rua" está cada vez mais cheia de gente sem nada; a massificação é cada vez mais geradora de pobreza. Amanhã a "Rua" estará ainda mais congestionada do que hoje de miséria e fome. Ao tentar debelar uma e outra teremos também de tentar encontrar soluções para a necessidade básica de um tecto,ainda que seja de um tecto dividido por muitos!...

Vamos juntar as nossas ideias de modo a torná-las realidade?

Um abraço amigo.

Anónimo disse...

Cheguei de nova visita à "G". Amanhã começa o trabalho e o sorriso é mais rasgado. Continua no mesmo banco. As experiências em albergues e com a Segurança Social, não são de desejar a ninguém. Não a posso censurar! O que podemos fazer é agilizar o processo do rendimento mínimo pedido em Janeiro.

O emprego da "G" deve-se ao empenho de um grande amigo no IEFP do Porto. À instituição um louvor nosso.

Anónimo disse...

com o aval do nuno retirei alguma informação da crónica relativa à G. concordámos que era excessiva no contexto do relato da ronda, e que expunha, sem necessidade, a sem-abrigo em causa. reservamos informações detalhadas para a próxima reunião geral, no respectivo grupo de trabalho, sob a habitual confidencialidade.