quinta-feira, outubro 19, 2006

vidas

Foi numa noite fria e chuvosa que saí de casa pronta a entrevistar a pessoa que daria início ao nosso trabalho de Antropologia.
Chegámos ao local combinado um pouco atrasados e deparámo-nos apenas com os habituais caixotes expostos organizadamente à porta do prédio que lhe serve de “abrigo” todas as noites.
Descemos, então, a rua e fomos encontrá-lo, como prevíamos, a arrumar os poucos carros que paravam naquela zona. Estava molhado e cabisbaixo; não nos saudou com a alegria que nos é familiar. “A noite está má; está tudo a “bater mal””, dizia ele enquanto se nos dirigia. “Estou todo molhado, não tenho dinheiro para comer, nem sequer para comprar tabaco...está mesmo mau! Por acaso não me arranjam umas sapatilhas?” Olhei-lhe para os pés e apercebi-me que, no meio desta chuva toda, o único calçado que ainda lhe resta são umas sandálias de Verão. É nestas alturas que nos sentimos culpados por nos queixarmos de frio quando temos armários cheios de camisolas em casa, da chuva só porque nos estraga o penteado ou porque nos esquecemos do guarda-chuva no carro...nunca nos lembramos de agradecer essas pequenas coisas que tanta falta fazem na vida destas pessoas.
O P. nasceu a 4 de Abril de 1975 e, com apenas 31 anos, é hoje um dos muitos sem abrigo que dormem todos os dias pelas ruas do Porto.
No início tudo corria bem. Nasceu em Matosinhos, em casa, teve uma infância normal, fez a primária na Escola de Guifões, o ciclo na Senhora da Hora e concluiu o secundário na Escola Nacional, tendo terminado os estudos no 12º ano: “Não tinha cabeça para aturar aquilo tudo!”.
Na adolescência começou a organizar algumas festas juntamente com os colegas nas quais punha música. Depois, aquilo que começou por ser uma brincadeira tornou-se em algo mais sério e chegou a tocar em vários locais como DJ: Penacova, “Tuaregue”, “Voice”, “Pacha”, entre outros.
Tendo a pintura como arte, “Não tenho nenhum curso mas sou profissional naquilo que faço” considera-se “polivalente”: “Tudo o que quiserem eu faço: jardinagem, carpintaria...um pouco de tudo!”
Casou em 1995 com S., num “dia descomunal” e teve um filho logo a seguir, em 1996, a quem deu o nome de J. P.. E foi a seguir ao nascimento deste que a sua vida mudou, quando entrou no mundo da droga. Quando lhe perguntei qual a razão que o levou a optar por esse caminho; se problemas familiares, no trabalho, amizades ou outra razão qualquer, respondeu-me que não pode culpar ninguém: “É como o tabaco; uma pessoa não te te pode enfiar um cigarro na boca...se quiseres fumas, se não quiseres recusas!”
Foi para Itália, Veneza, em 1998 onde trabalhou no “Fincantier”, um dos maiores transatlânticos existentes, tendo-se divorciado da mulher um ano depois, quando voltou para Portugal.
Em 1999 voltou a viajar, desta vez para a Bélgica, Antuérpia, trabalhando numa refinaria.
Em 2000 fez uma última viagem em busca de trabalho, desta vez para Espanha, Alicante e, no regresso, entrou no programa da metadona, num CAT, onde permaneceu durante 5 anos. Foi expulso em 2005 e, sem ter ninguém que o ajudasse, veio parar à rua: “É graças ao enfermeiro que agora estou aqui!”
Nessa altura, talvez por estar desprotegido, voltou a consumir: “Também não percebo como é que uns pais conseguem dormir à noite sabendo que têm um filho a dormir na rua.”
P. entrou há umas semanas no METAS, umas carrinhas, para tentar uma nova desintoxicação, até agora com bons resultados, através de um programa de metadona e reinserção social.
Durante toda a entrevista e apesar de já contactar com ele há já alguns meses aos Domingos à noite, fiquei sensibilizada com a sua pureza de sentimentos e com a boa disposição que consegue manter mesmo depois de todas as dificuldades por que já passou na sua vida relativamente curta.
Auto define-se como sendo “resmungão”, teimoso e orgulhoso, mas também prestável, amigo do seu amigo e carinhoso...”muuuuuuuito carinhoso!”
Gosta de gatos, na infância chamavam-lhe “Miau” pelos olhos verdes que ainda hoje o caracterizam e a profissão que gostava de exercer era condutor de comboios: “Não sei porquê mas sempre gostei de comboios, desde pequeno, e era uma coisa que adorava fazer.”
A maior loucura que cometeu até hoje foi, depois de um banho com uns amigos numa praia em Espinho em que lhe tiraram as roupas, ter atravessado a cidade, no comboio e pela rua, só em cuecas! É bom ver a alegria que transparece nos seus olhos quando recorda momentos felizes da sua vida.
E é também com emoção que recorda o maior desafio; o dia em que tocou actuou pela primeira vez, em Penacova: “É muito diferente estares desse lado a dançar e a ouvir música e estares no outro, em que tens que agradar as pessoas e fazer com que se divirtam”.
A tristeza volta a invadir-lhe o olhar quando lhe pergunto qual é a sua maior paixão, ao que me responde que é a sua ex-mulher, S., e o momento mais difícil da sua vida: a sua separação, quando estavam no tribunal: “Nem conseguia dizer nada...”
É também invadido por uma grande nostalgia quando descreve o momento mais feliz – o casamento: “A minha mulher desmaiou e tudo...eu só estava era a ver que ela não dizia o sim!”
E é por todas estas razões que, se pudesse, mudava tudo na sua vida depois do casamento: “Perdi-a por uma estupidez!”
E é nos pequenos detalhes que vemos quão diferente a sua vida é da nossa e como coisas que para nós são um dado adquirido, são para ele o maior sonho: “Ter uma boa casa, uma boa família e ser feliz...é só isso que eu quero!” E é talvez por isto que as suas expectativas para o futuro são curar-se, arranjar trabalho e uma mulher...quem sabe não reconquista a sua grande paixão!
O que mais o fascina no mundo é o seu filho; poder vê-lo crescer, jogar à bola e rever-se nele e a sua viagem de sonho é, depois de arranjar dinheiro, comprar um “grande carrão”, pegar no filho e na ex-mulher e “andar por aí...só parava em Espanha!”
A maior dificuldade que passou e passa na vida é “Estar molhado, querer alguma coisa quente para beber ou comer e não ter nada...o dinheiro não traz felicidade mas ajuda!” São estas e outras razões que o levam a afirmar que na rua não há nada bom: “É tudo do pior, levamos muitas “Calcadelas””, por isso aceita “Tudo o que me possam dar...não tenho nada a perder!”
O que mais gosta nas pessoas é o carinhocom que, por vezes, o tratam e de que tanto necessita e o que mais odeia é a hipocrisia.
Não gosta dos preconceitos que ainda há em relação aos sem abrigo e aos toxicodependentes: “As pessoas olham para mim como se eu fosse um criminoso.”
Vivendo num mundo que considera “cruel, ingrato e desumano” não se sente bem na sociedade em que está inserido: “Se houvesse outro universo apanhava boleia para lá!” No entanto, quando lhe perguntamos qual o país que escolheria para viver não vai tão longe e responde sem hesitações: “Itália! As pessoas são mais humanas...”
Se pudesse mudar o mundo acabaria com a droga, a prostituição, a pedofilia... “O mundo está podre! Acho que só devia haver dois carros por família...vamos acabar todos por morrer com falta de ar!”
Como última pergunta escolhi: se ganhasses o euro milhões o que farias? E foi aqui a minha maior surpresa! P. respondeu-me que ajudava todos os “amigos da rua”: “Construía um prédio com um apartamento para cada!” E com uma das suas sonoras gargalhadas acrescentou: “Depois abria uma firma de jardinagem e carpintaria para eles trabalharem para mim. Não podem viver sempre às minhas custas, não é?! Depois quando estivessem bem continuavam a vida deles...eu arranjava-lhes o primeiro emprego, depois era mais fácil!” Como é que uma pessoa que nada tem, se pudesse, dava tudo aos outros? Admirada, perguntei: “E para ti não fazias nada?”, ao que ele me respondeu: “Com tanto dinheiro não se pensa no que se faz...vai-se vivendo o dia a dia!”
E o único pensamento que me resta, com ou sem dinheiro, é que temos muito que aprender com o P.!

Inês Bessa

2 comentários:

Anónimo disse...

tocou-me profundamente este texto. o P. andou comigo na escola, nunca mais soube dele...as voltas que a vida dá. se eu puder ajudar, Inês, avisa.

Anónimo disse...

Lindissímo conto de vida real e belissima lição de vida que tu nos mostras aqui Inês. Pena é que o conto seja real. Fiquei realmente emocionada e tocada, o rapaz é um poeta.

bjs