Acompanhei a Manela na ronda que em tempos percorri, boa oportunidade para rever algumas caras conhecidas e pôr conversas em dia.
E tive sorte, porque o sr. D, habitualmente mal-humorado e pouco falador, abriu-se à conversa e o mais difícil foi deixá-lo. Falámos de países, de viagens, de línguas – em breve, segundo tese própria, todos passarão a falar português. Surpreendentemente deixou-se fotografar e - espante-se, tirou-nos ele mesmo uma fotografia com a sua própria máquina! Só que é muito difícil convencer o sr. D do que for contrário às suas convicções, por isso dizer-lhe que “puxar o rolo atrás” para repetir a fotografia não é boa ideia, ou que se abrir a máquina as fotografias ficam pretas, é tudo trabalho inglório. Não nos surpreendeu, no entanto, quando abertamente nos disse que o que mais gosta de fotografar é mulheres.
A noite continuava com boas surpresas. Pela primeira vez troquei algumas palavras com sr. F sóbrio. O álcool transfigura as pessoas, é incrível como parecia outro! Escondia o rosto atrás do boné, eram nítidas a vergonha e a timidez. Não sei bem sobre o que falámos, apesar de pela primeira vez ter percebido todas as palavras. Espantou-me a sua correcção – de resto nunca me desrespeitou, mas notava agora um cuidado para connosco que o tornava mais digno e a nós mais pequenos à sua beira. Mais tarde passámos de carro, vimo-lo agarrado ao saco comendo avidamente um pão.
No abrigo do sr. J estava, sozinha, a V. Viera fazer-lhe uma visita mas ainda o esperava. Falou-nos da filha, “com quatro anos já me dá por aqui”, apontava para a cintura. “Tem o mau feitio da mãe”, reconhecia num misto de orgulho e impaciência. Contou que trabalha como empregada de mesa num restaurante ao cimo da rua, portanto perto de casa da mãe, para onde vai a pequena depois da creche. Garantiu-nos que na 4ª feira estariam por ali para festejar os anos do sr. J. Quando saímos ele estava a chegar, começava lentamente a subir a rua. Queixou-se de uma queda que lhe maltratara a malfadada perna manca num eterno arrastar de azares – algum dia largará aquela moleta? Despreocupou-nos como sempre faz, “é a vida”, e seguiu rua acima.
Seguimos também nós, para o Aleixo, onde começámos a rondar, há quase dois anos e onde há muito não ia. Encontrámos lá outro grupo que simpaticamente acolheu os nossos sacos. Pude ainda conversar com um rapaz que costumo encontrar na minha ronda habitual. Deu-me a boa notícia de que conseguira um quarto pago pela Segurança Social. E começará brevemente o programa de metadona! Saímos no meio da confusão do costume, por entre boas noites ou insultos, caras tristes, outras contentes. A ronda terminava com a Manela a levar-me para junto dos meus amigos que tinham já terminado o que teria sido a minha ultima ronda antes das férias. Só que há sempre o insondável e imprevisível gesto – o que nos revela o mais puro e renovador encontro entre a memória e o futuro.
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