quinta-feira, abril 27, 2006

Crónica de 23.04.2006 (Areosa)

Partida a horas do creu mas com a equipa bastante desfalcada: o Nuno, a Joaninha e eu. Abril é também isto, feriado. Na Blockbuster, ninguém. No edifício embargado da Rua de Santa Justa, longa conversa com o sr. J N (arquitecto sem-abrigo) sobre a casa que este desenhou para o irmão – espaço, construção, problemas de obra, resoluções expeditas. Tão absorvido fiquei que não me apercebi da passagem dos outros inquilinos da estrutura arruinada. Seguiu-se o viaduto da Areosa, o encontro com o sr. M (que agora o largo pilar de betão apelida de “Lumes”), o sr. T e o sr. J adormecido. A conclusão foi junto à D. I, onde mais uma vez me fascinou com o modo como esta usa caixas de cartão para construir o abrigo para cada noite.

A longa conversa com o arquitecto J N – a quem, de resto, devo a colaboração num artigo que escrevi em fevereiro – e a operatividade destas caixas de cartão puseram-me a pensar na lógica do abrigo para sem-abrigo. Partamos da caixa: hoje tenho sorte, esta caixa é grande – espaço; esta semana foi um desastre, com o que choveu as caixas ficaram todas molhadas – impermeabilidade; tenho de a fechar por dentro mas deixar que fique um rasgo para poder respirar – ventilação; hoje não está frio, com um casaquinho aqui dentro acho que vou dormir bem – isolamento térmico; queres uma caixa para ti? hoje há ali várias porreiras... – facilidade de obtenção; veio há bocado dali um moina e eu fui com a caixa para aquele lado – mobilidade. Do discurso da D. I colhem-se várias das características imprescindíveis a uma célula temporária de abrigo a um sem-abrigo.
Devo confessar que sempre fui muito céptico quanto às estruturas que, nos últimos anos, têm enchido as páginas das revistas de arquitectura, dando forma ao conceito contraditório de “abrigo para aquele que não tem abrigo”. Entenda-se por ‘sem abrigo’ não só aquele que ‘não tem abrigo’ mas, frequentemente também, ‘aquele que escolheu a rua como abrigo’ ou ‘aquele que não quer ter abrigo’.
E, se não deixo de ter alguma simpatia por projectos como o da “Casa de bolsillo” de Martín Ruíz de Azúa ou o famoso “paraSITE” de Michael Rakowitz, é talvez porque a sua escala e o seu funcionamento mais próximo do saco-cama e da tenda de campismo do que da roulotte, os leva para o campo do design e não tanto para o da arquitectura. Francamente, é de uma coisa destas que a D. I precisa. Um invólucro com o tamanho das suas caixas de cartão que, durante o dia, possa guardar e transportar num bolso.
Já outros projectos, como o “Homeless Vehicle” de Krzysztof Wodiczko ou o vencedor do Prémio Tektónica 2004, o “AuzProjekt” (
www.auzprojekt.com) de três arquitectos da Póvoa de Varzim, me oferecem algumas reservas por confundir, na minha opinião, algumas ideias inerentes à vida na rua. O primeiro parece-me desconfortável: não consigo imaginar os sem-abrigo a passear pelo Porto com a própria casa qual carrinho de supermercado, nem a estacionar a casa debaixo do viaduto da Areosa. O segundo, ao instalar na cobertura das paragens de autocarro um pequeno habitáculo com quarto e wc, parece querer sedentarizar na rua um cidadão que escolheu a rua para ser nómada. Já a “Park Bench House” de Sean Goodsell, ao oferecer a possibilidade de transformar mobiliário urbano numa cama coberta é menos vinculativo e mais sério, ao reduzir os problemas da propriedade.
O facto é que estas propostas estão na moda. A arquitectura está na moda, o voluntariado também, a conjugação dos dois nestes objectos estranhos mas atraentes é perfeitamente natural. É também o resultado do aparecimento dum novo conceito de ‘nómadas urbanos’ que se extende a vários campos da nossa sociedade e de que o “Street Survivor”, videojogo em que uma jovem sem-abrigo de mochila às costas enfrenta os riscos da vida na rua em Melbourne, é apenas um exemplo.
Muitas destas propostas encontram-se em
www.we-make-money-not-art.com, mas uma pesquisa por “homeless shelter architecture” num qualquer motor de busca é também bastante diversificada. Chegamos, por exemplo, a um workshop de arquitectura no MIT em outubro de 2005 em que estudantes se servem de materiais usados para construir ‘abrigos para sem-abrigo’. As propostas redundam um pouco nas tipologias que os exemplos anteriores já anunciam – mais tipo tenda ou mais tipo caixa –, mas este caso tem a vantagem de reconhecer na reciclagem um processo urgente, rentável e com um enorme potencial.
É também esta a estratégia que emprega o arquitecto japonês Shigeru Ban, ao construir pavilhões temporários com tubos de cartão para albergar as vítimas do tremor de terra de Kobe, no Japão em 1995. Sistema que foi, de resto, repetido nos abalos de 1999 na Turquia e de 2001 na Índia.
E, na passada semana, ao pedir informações sobre estruturas de madeira lamelada reciclada a um fabricante, fiquei a saber que, no Porto (julgo que nos Carvalhos) foi montada uma laje neste sistema construtivo no interior de um enorme pavilhão para acolher os sem-abrigo durante o último inverno, particularmente rigoroso. A facilidade de montagem deste sistema é tão grande – quase bricolage, segundo o engenheiro da Jular com quem falei – que terão sido os próprios sem-abrigo a montar a estrutura.
Estas soluções, ao apostar no acolhimento colectivo e contrariar a vocação individualista das primeiras propostas, têm a vantagem de colocar os vários sem-abrigo em comunidade, mas não subsistem sem um mínimo de regras, um modelo para operar. E, se funcionam bem em condições especialmente adversas – como o frio do inverno – que as torna a única escapatória possível, provavelmente no dia-a-dia teriam de parte da comunidade dos sem-abrigo uma aceitação bem mais difícil. É um pouco este o destino dos quartos disponíveis na cidade de que grande parte destas pessoas se afasta por as vincular a um horário e a um regime disciplinar que contraria o princípio de liberdade e de ausência de regras que a rua lhes propõe.
E, se um paraSITE pode ser um instrumento extremamente útil para a subsistência de uma pessoa na rua, já um AuzProjekt corre o risco de ser um gadget que favorece e alimenta um tipo de vivência que, em sociedade, nos interessa combater.
Tanto mais quando a sua finalidade passa não tanto pelo apoio aos seus utentes mas antes por uma demonstração da virtuosidade e da capacidade criativa do arquitecto.


10 comentários:

Anónimo disse...

Carlos, isto não é um blog de arquitectura! Apenas 1/5 do texto é crónica... Um abraço
Jorge

Ps - Como estavam o Sr M, e J e a D. I??

Anónimo disse...

Carlinhos,

Gostei muito! Mais ainda da dissertação sobre o abrigo ideal para os amigos da rua.

beijos

luísa

Anónimo disse...

Carlitos,
aqui está 1 crónica fora do comum!!
E porque não??
Grande beijinhoooo!!!!!

Anónimo disse...

Carlos: Apesar de te teres explanado de menos nos casos que acompanhamos, pareceu-me muito interessante saber que há pessoas que estudam a solução ideal de abrigo, para os sem-abrigo.

Um abraço grande e bom fim-de-semana,

Nunder

jb disse...

Acho que podias, Carlos, ter dividido o texto em dois, apresentá-lo em duas crónicas separadas com títulos diferentes - ainda que a segunda parte se adequasse mais à mailing list do que ao blog.

Anónimo disse...

Boa Carlinhos=)...acho o texto muito interessante e tem tudo a ver com o que fazemos...já agora...porque n tentar conciliar arquitectura e sem abrigo?...um beijinho grande e parabens**Joana

pedro cruz disse...

é sempre muito bom juntar as peças e ver reunida informação que tenho dispersa, outra que nem conhecia. e pensares agora numa comunicação explanada disto tipo no creu ou outra banda?...

Anónimo disse...

carlos, pela primeira vez num mesmo artigo encontramos o termo "arquitectura" e qualquer referência aos "Carvalhos"...é preciso coragem!:)

de resto, os meus parabéns pelo artigo (que sou dos carvalhos e nunca identifiquei lá nada que merecesse atenção..)

andreia

p.s. ainda não explicaste como foste parar ao bar de cedofeita...

Anónimo disse...

o texto tá muito bom, muito bom mesmo e é passível de apresentação num qualquer vespertino a nível nacional. um pouco incompreendido, talvez, num blog desta numenclatura. anseio saber o tema da próxima crónica: Engenharia e Sem Abrigos? (com jeitinho, ainda arrastas o teu pai para as rondas...)

parabéns

Anónimo disse...
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