Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.
Daniel Faria
Escrevo a que será, provavelmente, a última crónica da ronda da Batalha. O grupo não vai desaparecer, apenas procurar novas paragens. Depois da última noite - e não só por causa da última noite - assim o decidimos.
Desta vez chegámos a uma Alexandre Herculano vazia. Na lage fria dormia, debaixo de um cobertor, o Sr. F, o único residente da Vivenda Silva. Deixámo-lo descansar e esperámos que alguém aparecesse. Assim foi, primeiro a Dona R, desta vez sem o genro, a mesma determinação na cabeça erguida, apontando o café como uma ordem, reclamando o saco antes de qualquer palavra. Outros chegaram, e foram muitos e rápidos: o sr. S trazia um amigo, os ditos flutuantes chegavam aos potes, na confusão uma conversa rápida com o N, a promessa de um novo encontro para conversar com calma, o olhar parecia sincero, entretanto amigos de amigos rapavam os sacos que não conseguimos controlar, o café voava, e quem chegava agora era a espanhola, o companheiro e o Sr. A., o amigo (outrora ilustraram uma reportagem do JN que o Jorge nos mostrou certa ronda), que desataram numa enorme reclamação por não lhes termos guardado sacos, a eles, "os que realmente precisam". Tentámos calmamente explicar que não contávamos com eles ali, que não fizéramos por mal, que por vezes é difícil distinguir quem precisa de quem não precisa do saco, mas a histeria aumentava, "porque nós já estamos aqui há dois anos!", a revolta por pouco não chegou ao insulto tal era a violência do discurso, quando decidimos deixá-los e seguir para a próxima paragem. Entretanto já todos tinham ido embora. Só lá ficaram eles e o Sr. F, que, incrivelmente, ainda dormia.
Seguimos para os Congregados onde encontrámos o mesmo jovem que rezou connosco na semana anterior. Não quis grande conversa, aceitou o último saco, o café, e uns aspegics que trazíamos connosco.
Marcámos encontro com a ronda do Bonfim e decidimos voltar aos Congregados, ainda havia uns sacos e algum café para distribuir. Pelo caminho encontrámos uma senhora cujo nome não fixei, que se dizia vítima de violência doméstica, estava na rua há muito pouco tempo. Convencêmo-la a ir à APAV, pareceu-nos seguir mais animada. Já nos Congregados estivemos com o L (ex-D. João I) e um amigo, que mais uma vez só aceitaram o café. Aparecia entretanto o Sr. O com uma serenidade pouco habitual. Falou com o Manel e, entristecido, reconhecia que muitas vezes era violento no modo de falar, "sabe como é, as drogas alteram uma pessoa". Despediu-se muito agradecido - ficou explicado o mau humor com que muitas vezes o encontrávamos.
De regresso aos carros estacionados em D. João I para a oração final, fomos interrompidos pela actriz da TVI, da qual já devem conhecer a história...explicamos-lhe quem éramos e que não dávamos dinheiro, apenas sacos e café, pelo que se despediu a seguiu o seu errante caminho.
Completámos a oração (!?) e seguimos para Nª Srª de Fátima, onde nos despedimos de mais uma ronda, com esperanças de que novas paragens fossem entretanto encontradas, para conseguirmos chegar aos mais necessitados. Aprendemos que temos que ser meigos e compreensivos quando existe humildade e gratidão do outro lado, mas também duros e exigentes quando encontramos arrogância. Em Alexandre Herculano faltou-nos saber dar o murro na mesa. Com os outros já fomos capazes de criar relações que podem ser frutuosas. Aos poucos vamos endurecendo, sem, no entanto, embrutecer. Trazemos sempre um gesto, um poema guardado para o nosso melhor leitor.
1 comentário:
Olá!
Não pude acompanhar a ronda mas é bom conseguir sentir-me a acompanhar-vos pela leitura da cronica. Pode não ter sido a noite que trouxe mais sorrisos nem a mais produtiva, mas temos muitos mais domingos qe trarão os :) todos que nos fazem continuar a caminhar.
Obrigada pela crónica,
Manela
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