A MINHA CASA É(RA) A RUA
Sábado, 8h30. A manhã está fria. A Baixa do Porto está deserta. Os primeiros autocarros circulam nas paragens ainda desertas. Vagueiam alguns noctívagos. Apressam-se os comerciantes para abrir as lojas e ajeitar as promoções nas montras, que o negócio já conheceu melhores dias.
Do outro lado da rua, na Praça D.João I, o senhor J., apoiado na sua bengala, está à nossa espera. É dia de ir ver um "quartinho". "Não quero fazer má figura", desabafou connosco dias antes de marcarmos a visita – que preocupação a de quem dorme na rua há anos.
"Não se preocupe com isso", garantimos. Nada que uma camisa, uma camisola e um bom banho quente não resolvam.
Rumo ao balneário público do Campo 24 de Agosto. "Bom dia. São 35 cêntimos pelo banho. Se desejar sabonete e toalha são mais 75", responde um rosto fechado e de pouca simpatia do lado de lá do vidro da recepção.
Por aqui passa "todo o tipo de gente", vai comentando Dona F., que à medida que parece confiar em nós deixa cair histórias. "Vêm aqui duas irmãs, que têm uma boa casa, mas preferem tomar banho aqui. Dizem que fica mais barato e não têm que limpar", ri-se.
Fossem todos os clientes como elas, pensa em voz alta. "Deus me perdoe, mas romenos e ucranianos. Deixam tudo sujo e só arranjam problemas", grunhe entre dentes.
"São da Cáritas?", questiona. "Porque tenho lá uns edredons em casa , se quiserem…", continua – mais tarde ainda nos tenta impingir também umas cortinas que estão lá em casa a estorvar . Agradecemos. Toda a ajuda é bem-vinda, mas preferimos o edredon às cortinas, explicamos gentilmente sem querer ferir o espírito solidário.
9h30. Barba feita, cabelo alinhado com risca ao lado, camisa aos quadrados e pólo a condizer. Ganhou anos de vida. Parece outro. Vaidades à parte, é tempo de ir ver o quarto.
É a própria senhoria que abre a porta e faz a visita guiada. Cabelo apanhado, rosto jovem, sorriso rasgado, discurso rápido e fluente. "Bom dia, senhor J., vamos então ver o quartinho? Olhe que são quatro andares!", avisa. "Em Lisboa, subia bem quatro andares", exclamou o senhor J., que conta mais de meio século de vida e alguns anos a dormir nas ruas de Lisboa e Porto. E subiu, sem pestanejar, enquanto a Dona S. foi obrigada a fazer uma paragem forçada, que isto da asma ataca novos e velhos.
O "quartinho" está em remodelação. "Estou a substituir a cama de casal por uma de solteiro para ficar mais confortável", disse despachada. "E, olhe, até tem televisão para se distrair", continua. Corrida rápida ao WC e cozinha partilhados. Num discurso rápido e despachado lá vai explicando as condições do alojamento e as regras da "casa": fumar só na varanda e nada de barulho à noite porque isto "é um local de respeito".
"Então, gosta do quartinho?", pergunta? – seguramente que o senhor J. só ouviu palavras soltas da Dona S. E poucas trocaram. Também não era preciso. O olhar e sorriso expressivos deste senhor de barba e cabelo grisalhos conquistaram a jovem senhoria, que já "aturou de tudo na pensão" e recebe os novos hóspedes de braços abertos, mas de pé atrás.
De palavras parcas e discurso desalinhado senhor J. deixou escapar, em voz embargada, aquilo que nós, voluntários da ronda, e, seguramente de outras rondas, gostaríamos de ouvir mais vezes: "Eu fico com o quarto. Não quero ficar na rua!".
A rua era a casa do senhor J.
PS: E porque as rondas se fazem de histórias como esta, damos as boas-vindas ao novo voluntário, o L. (pode não querer ser identificado). Contamos contigo para escrever os próximos capítulos da ronda de Santa Catarina.
Ana Oliveira
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