segunda-feira, janeiro 16, 2006

3ª Crónica de 08.01.06 (Stª Catarina)



"Os pobres que buscamos podem morar perto ou longe de nós. Podem ser material ou espiritualmente pobres. Podem estar famintos de pão ou de amizade. Podem precisar de roupas ou do senso de riqueza que o amor de Deus representa para eles. Podem precisar do abrigo de uma casa feita de tijolos e cimento ou da confiança de possuírem um lugar em nossos corações." Madre Teresa de Calcutá

(Foi com um outro pensamento de Madre Teresa de Calcutá que demos início à ronda mas achei significativo começar a minha crónica assim, já que, enquanto procurava "o pensamento original" acabei por encontrar este, que além de belo achei bastante adequado.)

Após o momento de oração com Madre Teresa de Calcutá e após alguns reajustes na reorganização de carros, circuitos e sacos para dar, partimos 7 no jipe da Mafalda para a "Ronda de Sta. Catarina". Tínhamos como destinos a rua de Sta. Catarina, a Trindade, o Silo Auto, o JN, e, o habitual Aleixo -para remate final.

A nossa primeira paragem foi na Trindade. O Sr. C., que na maioria das vezes não gosta de falar, desta vez, movido pelos copos, tagarelava entre monólogos indecifráveis, palavras arranhadas e discursos imperceptíveis! Bem nos podiamos esforçar por entende-lo mas era sempre um esforço em vão! Comunicar era, de facto, uma tarefa muito difícil (senão impossível!) naquele momento, pelo que fomos obrigados a nos ficar pelos "abanar a cabeça em sinal de sim", e retribuições de passou-bens que insistia em dar. As primeiras caras novas surgiram aqui: um casal dos seus 30 e tal anos, com uma história escondida entre aparentes bordéis, exclusão social, discriminação e denúncias… Ela chamava-se C., calada, tímida, insegura até, ali brevemente reconfortada por um café quentinho e desconfortável com o cobertor à vista num saco de plástico transparente... Ele era o P., bem mais falador que ela contou: "esta é a mulher que eu amo, não posso levá-la para casa de meu tio porque não seria aceite, por isso passo a noite cá fora com ela"…Contou que era vendedor da revista Cais, e disse que se por lá já não estivessem no próximo domingo seria bom sinal..

Sta. Catarina estava deserta… Acho sempre engraçado chegar àquela rua comercial diariamente tão cheia de gente frenética e ainda com as luzes de natal a cintilar por toda seu corpo acima, e encontrá-la assim, a nu, com as suas maiores características expostas, a cru… P. já dormia, desta vez num novo patamar de entrada de uma loja, já tantas vezes utilizado por outros sem abrigo, como o Sr. Z.… Um copo de café, quente, com pouco açúcar e a deitar fumo ali ficou, entre ""See you next Sunday! Have a nice week".

D. E. já lá estava, à porta de casa, à nossa espera, com ar algo zangado, mas só cheia de vontade de desabafar as suas histórias dos dias anteriores: a polícia que tinha ido levantar o corpo morto de uma rapariga toxicodependente na "casa" dos seus vizinhos do r/ch, os seus problemas de sáude e recente mau estar de coração e dificuldade em respirar, o marido que também precisava de ir ao médico, o Sr. M. que ainda não se consegui levantar… e o "Carrlos", sempre o seu Carlos, que não estava, e quando vinha afinal… Entre risos, abraços, desabafos, fomos ficando, e ouvindo, e falando, e aquecendo. Algo incomodados, ou só querendo incomodar, os seus vizinhos do r/ch deram-se a ver entre meia luz e vultos escuros dificéis de decifrar. Numa janela sem vidro apareceram umas mãos entre a persiana, abre-se um buraco e começam a falar connosco. Sacos de comida para eles também, entre pratas de alumínio numa mão, isqueiros no quarto escuro, tentativas algo insistentes para entrarmos "que eles também precisavam de falar", e uma parede ao fundo como remate de todo o cenário, ironicamente cheia de cores e serigrafias de mãos amarelas, vermelhas, verdes… algo que despropositadamente enchia o espaço oco. D. E. sempre a relatar seu dia a dia, ele entre as persianas, quadros cruzados, pessoas comuns de não terem o real abrigo…

O "segundo P." cruzou-se connosco num sinal de vermelho. Enquanto parávamos demos-lhe as boas noites e um saco de comida. Íamos a caminho do JN, onde iríamos encontrar o Sr. D.. Aqui mais 4 caras novas, mais distribuição de sacos e dedos de conversa: uma rapariga, um rapaz, um senhor branco e um outro senhor de cor. O R., o Rc, o A. e ela, que peço desculpa não recordo o nome… Mais uma vez histórias de quem até tinha um trabalho e de repente viu-se sem nada, de famílias desencontradas, de exploração de emigrantes ucranianos na construção civil e por isso fáceis despedimentos… Nenhum deles se conhecia anteriormente e no entanto, pareciam todos tão próximos uns dos outros, fruto da comum realidade que os referenciava… Nesta altura já quase não tínhamos sacos, tivemos que recorrer a uma estratégia de partilha e tudo se resolveu. O Sr. Rc. mostrou interesse em que o informássemos acerca da possibilidade de ter direito (ou não) a usufruir do rendimento mínimo, e como se desenvolvia este processo na segurança social. Ficámos de falar, investigar, e depois voltar a contactá-lo com informações mais certas.

O Aleixo ficou-se, desta vez, só pela oração, visto o grupo do Sr. Fernando ainda não ter chegado e todos nós, inclusive os restantes carros das outras rondas, estarmos sem praticamente nada para dar… A ronda deu-se por terminada, mais uma vez com a mesma frase de Madre Teresa de Calcutá no momento da oração. Termino a minha crónica com a frase de um grande senhor português. "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis, e pessoas incomparáveis." Fernando Pessoa

Que os pequenos momentos em que estamos na ronda sejam, também eles, sempre momentos inesquecíveis, com coisas inexplicáveis, de e para pessoas incomparáveis…

Até à próxima ronda!
Raquel Henriques

1 comentário:

Anónimo disse...

Raquel, a tua crónica está LINDA!!!