Batalha: A ronda do Yoga, dos puzzles e do queijo com vinho
O desânimo de saber que não podemos, por muitas forças que tenhamos, proporcionar uma vida mais cor-de-rosa a quem só precisa de uma primeira ajuda, percorre os pensamentos durante as parcas horas semanais que dedicamos a cada ronda, não é facilmente superado, e atormenta o sono de qualquer mente mais conscienciosa. No entanto, a percepção de que fazemos mais do que lamentar em frente ao televisor a vida de algumas pessoas que não conseguem superar o tormento da vivência em sociedade, acalma esse desânimo e dá-nos forças para querermos cada vez mais e tentarmos sempre mais do que proporcionar uma refeição.
Não perdi a esperança de ver o Sr. R. a desenhar outdoors, de ver o Sr. D. numa cama quentinha, acompanhado por amigos com os mesmos anos de vida, ou de ver o Sr. P. a encontrar o amor que o traga de volta à sociedade que eles tanto desprezam.
A cada ronda que passa os laços reforçam-se, a vontade e o ânimo aumentam. E o último Domingo foi marcante nesse sentido. Nem o atribulado começo com um "bem-disposto" Sr. F. conseguiu deitar por terra a vontade que o frio teima em combater. Deliciado com os contorcionismos de dois praticantes de yoga expostos num pilar do edifício Camões, o angolano, que mesmo quando decide falar não é perceptível, pouco se importou com o café que parecia querer escorregar para o passeio, ou com o bolo de amêndoa que deve ter tido o seu fim numa valeta. Animados com a boa disposição do Sr. F., mas convencidos de que qualquer conversa seria infrutífera, seguimos (as duas Anas, a Sofia, o Pedro e o Manuel) para o Silo-Auto. Foi aqui que encontramos os nossos amigos.
É difícil não gostar do Sr. R., não querer levá-lo para casa, dar-lhe o mimo que ele nunca teve e explorar as capacidades às quais nunca ninguém deve ter dado valor. A vida difícil que teve, e que no passado Domingo percebemos que não se deve apenas a um casamento mal conseguido, mas que cresce desde uma infância atormentada, com irmãos predilectos e pais difíceis, fizeram-no preferir a vida solitária das ruas, onde não encontra os “amigos” que lhe fizeram mal, mas onde ainda tem vergonha de quem o reconheça e o possa ver "assim". O Sr. R. tem aproveitado os domingos para desabafar, e nós apreciamos, mas tenho a consciência da impossibilidade de o ajudar completamente. Nada nos garante que, voltando à vida activa, não tenha outra desilusão que pode ter efeitos ainda piores do que voltar para a rua. O que faz alguém perder as forças como ele perdeu não se cura com conversas dominicais, mas tem solução…
No Silo-Auto, a dificuldade esteve em repartir atenções. Estávamos interessados na história do Sr. R., mas não podíamos esquecer o Sr. P., um homem de 40 anos a quem misteriosamente um advogado tudo prometeu e que da mesma forma o abandonou de novo à sua sorte. O que será que leva alguém a de forma espontânea, oferecer uma nova vida a alguém e depois desaparecer, deixando o Sr. P. pior do que estava quando já não tinha esperanças. Habituado à vida sem regras e sem horários, o Sr. P. não quer ajuda que o condicione, assim como nenhuma das PSA.
Divertida foi a história que contaram de quando tentaram furtar, num supermercado, “um queijinho para acompanhar o pacote de vinho”. Na primeira experiência de roubo foram apanhados de imediato, realidade que os levou a reforçar a consciência de que “não sabemos roubar”.
Seguimos para o Sr. D.. Com “sessenta e tal anos”, este senhor não tem consciência de que tem direito a uma vida mais confortável. Talvez por isso rejeite sempre qualquer hipótese de uma ida à Segurança Social e, quando finalmente aceitou, fugiu com medo do monstro que é a burocracia e os bichos do funcionalismo público. Depois de muito insistirmos, no passado Domingo acabou por aceitar tentar mais uma vez, mas para isso foi preciso “deixá-lo à vontade”. Como? Quando lhe prometi que ia connosco sem qualquer obrigação de aceitar fosse o que fosse e com a reserva de que quando quisesse podia debandar, a resposta foi imediatamente positiva. Mas esta é a única hipótese de lhe conseguirmos proporcionar uma vida melhor, não podemos falhar, correndo sempre o risco de ele tornar a fugir do monstro e das regras.
Na Praça D. João I, conhecemos o “M. dos puzzles”, pelo menos é assim que penso nele. Homem novo, que sempre trabalhou na área da hotelaria (muitas vezes associada à prostituição), diz não ter vícios e denunciou uma vontade de não permanecer no mesmo sítio muito tempo. Mas enquanto fica, distrai-se com os seus puzzles e os seus jogos. Sem mais nada para fazer, cronometra no relógio da Igreja o tempo que demora a fazer um puzzle e todos os dias tenta superar o seu record. Aplicado em diversas áreas, este empenho e vontade de se superar daria um excelente profissional. Mas M. vive assim, rejeita as regras e nem sequer aceita ser condicionado por um vício. Enquanto seguíamos para o Aleixo, discutíamos se ele falaria verdade ou se fantasiou acerca da sua vida, das suas prioridades. Quando sugeri que o espírito dele seria o de um eremita, que vai tentando aprofundar os seus conhecimentos e com isso fortalecer o seu espírito, disseram-me que eu é que estaria a fantasiar e que alma dele não chegaria tão longe. É provável...
Até Domingo
Ana Maria Lima
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