Mais uma visita à UHSA…e, no entanto, nunca será possível dizer que qualquer uma delas é apenas 'mais uma'…
Há um ano (um ano!) que o nosso grupo faz o que pode para amenizar, por pouco que seja, o clima de sofrimento que se abate sobre as vidas daqueles que vêem os seus sonhos destruídos e os seus esforços e esperanças reduzidos a nada pelo 'sistema' duma 'civilização avançada'… Esperanças de pessoas de todo o mundo que arriscam tudo o que têm por uma oportunidade no nosso abençoado Portugal, de que tanto nos queixamos, vendo-o como um porto de abrigo, um ponto seguro a partir do qual esperam poder partir para uma nova viagem, começar uma nova vida, iniciar uma nova luta que, no final de contas, nos é comum a todos…
Há um ano que, a cada mês (agora distribuídos em dois grupos), cada um de nós visita os imigrantes que, por algum motivo considerados ilegais, são apanhados pelas autoridades portuguesas por todo o país e aprisionados na Unidade Habitacional de Santo António.
É sensivelmente há um ano que tentamos com eles partilhar um bocadinho de nós mesmos e, quem sabe, fazer um bocadinho parte do mundo daqueles a quem dedicamos este bocadinho das nossas vidas, que às vezes parece tão insignificante mas que em determinados momentos se revela parte de um surpreendente milagre de que todos fazemos parte…
Entre desilusões e alegrias, momentos de emoção e de euforia, já tivemos oportunidade de guardar nas nossas almas e de enriquecer as nossas existências com a alegria e boa disposição de marroquinos e brasileiros, com o respeito e cavalheirismo de ucranianos e bielorrussos, com a calma e simpatia de indianos e paquistaneses, com talentos escondidos e olhares alegres mas profundamente marcados pelo sofrimento de israelitas e bósnios, o ritmo no sangue dos luso falantes dos vários pontos de África ou o à vontade e desembaraço (às vezes demais:) de nigerianos e croatas…
Entre sorrisos e caras de caso há sempre algo que nos marca: a frustração perante a impossibilidade de fazer o que quer que seja além do pouco que tentamos fazer e que às vezes nos leva a duvidar da utilidade do nosso esforço, e, por outro lado, a alegria incomparável que é ouvir de alguém, cujos olhos marejados exprimem uma gratidão indescritível, um "Obrigado, hoje fizeram-me feliz" que nos faz crer que vale sempre a pena dar tudo o que temos, por pouco que seja, porque recebemos sempre muito mais.
Sejam quais forem as dificuldades com que nos deparemos, serão sempre momentos como este que nos darão força para continuar. Momentos como os que tivemos na visita de hoje… Depois de um mês de ausência (por razões alheias à nossa vontade) são visitas como a última que nos fazem ter a certeza do quanto tudo isto significa…
Éramos 4 à porta da UHSA…4 mulheres à chuva à espera que as portas da 'casa' que já tão bem conhecemos se nos abrissem para mais uma 'aventura' (que o é, sempre) no mundo dos sonhos desfeitos… Sem saber muito bem o que fazer perante mais de 20 utentes de várias nacionalidades que já sabíamos que estariam lá dentro, cuja intimidade íamos, de certa forma, invadir durante as duas horas que se seguiriam, entramos, quase a medo, munidas com o bom humor da nossa nova 'sub-coordenadora', a simpatia da nossa algarvia de serviço, a calma da nossa menina alentejana e, claro, a bela da minha viola desafinada ás costas! :)
Não esperávamos nada, só que a visita corresse bem…e correu melhor ainda!
Para começar, fomos recebidas de braços abertos por um grupo que, de imediato, se reuniu à nossa volta pronto a escutar tudo o que tivéssemos a dizer. Nunca tal nos aconteceu até hoje!
Um senhor angolano tratou de chamar toda a gente que na altura se encontrava no salão principal para 'ouvir as meninas'. Só uma pessoa não se juntou ao grupo (e foi especialmente doloroso ver que o facto causou desconforto entre os residentes…), mas de resto todos eles se sentaram juntos esperando pelo que pensavam que seria um espectáculo de variedades ou coisa que o valha… Ainda bem que não pagavam bilhete… Saiu dali um verdadeiro assassinato da canção 'Don't Give Up'… mas foram os próprios que nos pediram uma 'modinha' portuguesa, e então lá nos safamos com uma 'Laurindinha' improvisada mas que conseguiu animar o nosso 'público' a tocar e a cantar connosco, com batuque africano à mistura e tudo!
Depois da introdução, em que também os 'obrigamos' a cantar o nosso já mais que conhecido 'No Xukurelá' – foi especialmente bonito ver os chineses, que raramente participam, a torcer a língua o mais que puderam para nos acompanhar:) –, seguimos com o jogo do novelo – que não chegou para todos, tantos eram os participantes! :) – e, feitas as apresentações, seguimos diferentes caminhos consoante a tarde correu…
Adorei ver o grupo que se juntou para jogar às cartas e chamou (!) a Cláudia para os acompanhar numa sueca; a animação com que quase se destruíram as prateleiras da sala durante o jogo de pontaria conduzido pela Amélia; a expressão de felicidade dos argelinos enquanto ensinavam à Sónia algumas entoações em línguas diferentes:); a forma como se divertiram os chineses com a minha falta de jeito para pronunciar palavras em chinês ou para lhes explicar o que era um dragão…que vergonha…mas rimo-nos tanto!... :) Não esquecerei também as raparigas bósnias, que só não dançavam porque o pai duma delas havia falecido pouco tempo antes… a confiança que demonstraram ao partilhá-lo comigo… A alegria de um croata a cantar o 'La shate mi cantare' a plenos pulmões enquanto o 'grupo dos cd's' fazia uma lista de 'discos pedidos' para a próxima visita…
Quase todos eles, incluindo aqueles com quem não conseguimos estabelecer uma maior proximidade ao longo das duas horas que ali passamos, se deslocaram à porta da 'nossa' salinha, e criaram ali um verdadeiro 'corredor do adeus' quando saímos… Só se ouvia 'Au revoir's, 'Adiós' e até 'Taitié' (que é chinês, já aprendi!) … Tenho a certeza que nenhuma de nós se importaria de atrasar aquela despedida por mais umas horas…
Tenho certeza que todas nós saímos de lá mais motivadas que nunca para enfrentar as dificuldades que se nos depararem ao longo deste caminho que escolhemos percorrer… Por aqueles que não têm outro remédio senão percorre-lo, fazemos por acreditar que os pequenos gestos podem, realmente, fazer a diferença para eles…
Para nós fazem, sem dúvida…
Ana Pinho
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