O mês terminou e nós iniciamos, nesta primeira crónica, o começo de um ciclo de registos mensais da vertente das Famílias. Em cada mês haverá uma partilha dos dias que decorreram, do trabalho que foi feito, da entrega oferecida e dos passos dados pelas pessoas que ajudamos. Serão, à semelhança das outras crónicas do FASrondas, espaços de testemunhos “com medida”, ou seja, relatos onde a privacidade e a intimidade das pessoas faladas não poderá ser colocada em causa. Em cada mês focaremos de modo mais aprofundado um dos casos de Família, até que todas as situações “vos sejam apresentadas” e além da reflexão sobre o estado geral de todos os acompanhamentos.
As Famílias são uma vertente muito particular onde lidamos ainda mais de perto com as pessoas ajudadas. A regularidade, o tempo e continuidade das visitas estabelecem linhas de especial aprofundamento afectivo e de particular empenho estrutural. Acompanhamos situações diversas e, em cada uma delas, integramos parte de uma crónica que é inteira, imensa e única. Todas possuem momentos variados, difíceis e crescentes, de empenhos necessariamente mais assertivos, mais esforçados e “conquistazinhas”, efectivamente… gigantes.
Neste momento somos 31 voluntários, 13 padrinhos e 13 Famílias. Acompanhamos o E., a B., o Z.M1., a D.E. e Sr. F., o Sr. F.A., o Sr. O., a M., o Z.M2, o M., a Le., a D.R. e Sr. D. e D.C., a Li. e a D.G.. A Fi., a Fe. e o Sr. E constituem três novos casos a tomar início durante o mês de Fevereiro. O grupo tem margem de manobra para crescer e alargar os braços da ajuda mas procuramos ir dando um passo de cada vez, com o ritmo imposto pela realidade do que somos e das pessoas com quem assumimos compromissos de cuidado, ajuda e Amor. Há uma natural evolução nos laços e nos afectos estabelecidos que exige aprofundamento e descoberta permanente se queremos estar, com a verdade, ao lado da “nossa família”.
Comecemos com o nosso querido Z.M2. O Z.M2 é um senhor com quase meio século de idade que a ronda da Areosa conheceu nas visitas de domingo à noite, no final do ano de 2006. Nos finais de 2007 entendeu-se tratar de um caso que estaria em condições para integrar a vertente das Famílias. As conversas dominicais haviam permitido o estabelecimento de um contacto sistemático e o Z.M2 demonstrava-se interessado num acompanhamento ainda mais próximo. Com muitos anos de consumo de drogas e de vida na rua este era o momento ideal para darmos esse passo já que ele oferecia provas de começar, afirmativamente, um novo reinício na construção da sua vida. Em Abril de 2008 a Sara G. e a Inês B., voluntárias das Famílias, eram-lhe apresentadas e, nesse encontro, tomava início a história de um laço novo.
Esta é uma narração de um “caso mais feliz”, sendo que, apesar de um ou outro momento mais difícil, o Z.M2 tem mantido grande consistência no tratamento da desintoxicação e na estabilidade individual, familiar e social. Entenda-se, com isto, que os problemas e os desafios têm surgido! Mas que, mais do que isso, o Z.M2 tem demonstrado o essencial para “a felicidade”: a fidelidade aos seus compromissos e objectivos pessoais e colectivos. O positivismo e desportivismo constantes o empenho com que luta e investe no plano de vida que para si mesmo estipulou e a humildade com que solicita uma mão quando está mais fragilizado, tirando partido das ajudas que tem a graça de ter disponíveis e das pessoas próximas que muito o amam, têm sido autênticas armas de conquista.
Em 9 meses o Z.M2. avançou com aprovação no tratamento com metadona, cumpriu assertivamente e pacientemente as regras dos estabelecimentos onde habitou, mudou de estadia, alcançou melhorias na sua vida pessoal, reconquistou confiança dos familiares, alargou contactos com eles, procurou ocupação em cursos, formações ou outras actividades laborais, manteve-se o mais afastado possível de ambientes antigos que não considera positivos, ajudou um velho amigo na venda de algumas miudezas da sua loja enquanto não obtinha respostas às candidaturas e programas em que se inscreveu, estabeleceu graus de conquista de autonomia e disciplina, e foi, entre passinhos pacientes e optimistas, reconstruindo a sua auto estima, estimulando o prazer pela vida e redescobrindo o sabor de cada coisa. Em Agosto de 2008 foi, finalmente, contactado para prestar serviços de manutenção de jardins numa Junta de Freguesia! Este foi um momento especialmente marcante pois permitiu-lhe (re)sentir-se útil, iniciar um novo ciclo de autonomia e responsabilidade financeira e transitar para uma outra fase social do seu processo de reinserção social, em ambientes íntegros e salutares. Presentemente aguarda, ansiosamente e com promissoras expectativas, pela renovação do seu contrato laboral! O Z.M2 é cumpridor e responsável. Este facto tem sido sistematicamente comprovado pelo seu comportamento nesse trabalho, no seu rigor face às regras das instituições onde viveu e no cuidado, carinho e preocupação que demonstra sentir pelos outros.
A Sara e a Inês entregaram-se verdadeiramente a esta nova pessoa nas suas vidas e apaixonam-nos sistematicamente com os seus testemunhos. Em férias ou indisponibilidades forçadas contactam-no através de telefonemas ou envio de mensagens. Encontram-se em sítios habituais para ouvirem e falarem. As histórias do presente e do passado saltam, correm, interpelam-se e projectam-se no futuro, ao ritmo de conversas fluidas e agradáveis entre os três. Falam de música, cantores e concertos, livros, notícias e artigos de jornais, abordam temas religiosos, política, actualidades… Conquistaram, nele, espaços de confiança e naturalidade. Sabem do que gosta, por isso há espaço para as coisas que recolhe nas suas colecções, para toda a espécie de raças de cães, para o futebol, o Sporting, o cinema, o café daquele sítio, a feira tal, o jantar em determinado lado. Ajudaram-no em mudanças, constipações, consultas, currículos e dias mais complicados. Com ele aprendem sobre o funcionamento de um CRI e conversam sobre este último processo da sua desintoxicação. O contacto com as assistentes sociais, e outros técnicos da sua rede social, é efectivo, sendo elas uma ajuda útil no esclarecimento de alguns pontos simples.
O Z.M2 vai-se revelando extremamente sensível em relação ao que o rodeia e às necessidades e carências que observa. É com curiosidade que questiona sobre o voluntariado e as diversas formas de contribuição e ajuda. Por isso no final do ano passado foram, os três juntos, para uma campanha do Banco Alimentar! – experiência que o Z.M2 adorou…
A Sara e a Inês são uma espécie de ponte. Como outras estabelecem-lhe ligações “com o lado de cá”, ligações que foram e são por ele solicitadas e cultivadas. Alimentam-lhe o ânimo, a esperança e o positivismo. Dá-se. Dão-se. Troca-se. E, no seu tempo e caminho, o Z.M2 vai brilhando… e fazendo brilhar.
“Não houvesse pessoas maravilhosas no Mundo… seria Natal todos os dias… Obrigada por serem dessas pessoas…” (Z.M2)
Raquel Henriques
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