A noite está mais amena do que eu esperava. Parece que a vaga de frio nos deu tréguas por hoje.
A ronda começa como as anteriores, aproximamo-nos do Sr. A., damos-lhe as boas noites, tentamos começar uma conversa. Sem demoras, o Sr. A. diz-nos que não quer falar connosco, "Vão-se embora! Deixem-me em paz!". Desiludidos, não temos outra escolha senão aceitar e voltar a tentar na próxima semana.
É necessário recuar algumas semanas na minha memória para conseguir ver o Sr. A. a fazer-nos sorrir com as suas histórias ou a falar das notícias que leu no jornal. Desde então, à medida que o Inverno foi avançando, foi mudando de sítio e de disposição. Agora, com a cara tapada pelos cobertores e sem que saibamos porquê, pede-nos para o deixarmos.
Esta incerteza de não sabermos se vamos encontrar alguém no "seu sítio" ou não, se esse alguém nos vai querer falar, se vai estar a dormir (ou a fingir que dorme) é algo que aprendemos a aceitar. Voltamos a tentar com a mesma esperança na semana seguinte.
Nova tentativa. Batemos a outra "porta": o Senhor J. A expetativa de o encontrarmos não é muita. Já há duas semanas que não o encontramos no "seu sítio". Até hoje, nas nossas poucas visitas nunca conseguimos ir além de conversas curtas, deixar o "saco" e um cobertor.
Mas hoje encontramos o Sr. J., recebe-nos bem disposto, senta-se, aceita uma cevada quente e conversa connosco. Num tom ligeiro confia-nos a sua história, fala-nos da saída de casa ainda novo para o "Grande Hotel" onde fez o "13º ano" e a formação de soldador. "Qual o nome desse Grande Hotel?" perguntamos."Custóias City" responde com um sorriso. Prossegue o seu relato, que passa pelo trabalho de soldador, um acidente de trabalho, a rua, a medicação substituída pelo vício que exibe numa garrafa de plástico, os irmãos a quem a vida não tratou muito melhor do que a ele.
Para desanuviar muda o assunto, falamos de coisas mais alegres, e até brincamos com os seus ataques de sonambulismo. Despedimo-nos com sorrisos, agradece-nos a conversa, deixamos a certeza que voltamos na próxima semana. Não sabemos se o encontraremos na próxima semana.
São várias as "portas" onde ainda iremos bater nesta noite. Não sabemos se debaixo de cada cobertor está alguém à nossa espera com um sorriso ou tão pouco com vontade de trocar dois dedos de conversa. Mas sabemos que, de cada vez que a persistência dá frutos, sentimos uma esperança renovada. Cada sorriso, cada conversa, cada pessoa que confia em nós, cada pequena conquista, mostra-nos que vale a pena a espera, mostra-nos que vale a pena continuarmos a tentar.
Luís Silva
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