quinta-feira, outubro 29, 2009

Crónica da Ronda da Batalha - 18.10.2009

Olá a todos
Chamo-me Francisco, e estou nas Rondas desde Abril deste ano. E embora o receio de não ser capaz de cumprir a tarefa me tivesse assaltado antes de a começar (por nunca a ter feito), a verdade é que as palavras que o Jorge me dirigiu na sessão de esclarecimento se revelaram muito verdadeiras. Dizia-me ele que se eu tinha MESMO vontade de fazer este género de voluntariado, ainda que  pensasse não ter a capacidade de o fazer, o melhor era lançar-me em frente, e talvez viesse a descobrir que afinal as ferramentas já cá estavam, eu é que as não conhecia.
Durante este tempo ganhei amigos e amigas, no FAS e na rua, e tenho descoberto todas as noites de Domingo (mas também durante a semana) o que é afinal isto de ser voluntário, quer nos bons momentos de boa conversa e sorrisos, mas também (e sobretudo) quando as coisas não correm como desejaríamos, quando as dificuldades aparecem. Para mim, tem sido precisamente aí que tenho descoberto quais são realmente as ferramentas que eu e todos temos (ou desencantamos) para fazer face aos silêncios, ao sofrimento, à vida dos amigos que encontramos na rua.
No início encontrámos o N. Costuma estar sozinho, no seu lugar habitual, mas hoje estava com outra pessoa. O N. tem 25 anos, é toxicodependente, e deixou a casa dos pais já há alguns anos, e conhecemo-lo há alguns meses. Diz-nos que está farto desta vida, que quer mudar, que já está à espera de uma vaga numa comunidade. No N. chamou-nos sempre à atenção o factor idade, e a possibilidade de uma vida que o mesmo ainda tem pela frente. Insistimos com ele para não desistir de se tentar tratar. Um dia encontrámo-lo tão em baixo, que ficámos cerca de 1 hora a conversar com ele, e o tempo passou quase sem darmos por isso, com poucas palavras, mas com a nossa presença e a procura de deixar alguma luz de esperança. Hoje essa esperança parece maior. Despedimo-nos com trocas de sorrisos, e um obrigado.
 Depois, fomos ter com o Sr. F., que tem 57 anos, e tem problemas de alcoolismo. Embora não muito conversador, conseguimos, na última semana, bater o record de tópicos de conversa abordados. Sendo a nossa intenção unicamente ganhar o "à vontade" das pessoas para melhor as poder ajudar, o desenrolar de algumas perguntas foi o suficiente para ouvirmos do Sr. F. algumas coisas da sua vida passada e presente, com algum humor à mistura. É visível uma grande revolta do Sr. F. para com a vida e o mundo, mas também já vamos sentindo que a nossa presença vai contando para ele nestas noites. Nesta, porém, encontrámo-lo a dormir profundamente, e depois de algumas tentativas para nos ouvir, assim o deixámos.
A seguir encontrámos o Sr. F., já conhecido desta ronda há anos, mas que presentemente tem a sua situação ainda mais complicada. O Sr. F. tem vivido num conjunto de papelões onde guarda todas as suas coisas, com uma higiene muito deficiente, e sabemos nós, com uma alimentação também ela limitada. Sofre de esquizofrenia, e alterna momentos de lucidez, com aqueles em que se embrenha nos seus escritos e histórias que dificilmente conseguimos compreender o sentido, e outros momentos em que o álcool faz a sua entrada. No entanto, recebe-nos sempre de uma forma simpática, gentil mesmo, e se não nos quer junto dele naquela noite, diz-nos que se quisermos não temos que ficar, que sabe que temos que ir ter com mais gente que precisa. Hoje estava fora do seu local habitual, porque junto ao seu sítio abriu um Hotel e uma loja, que o obrigaram a ficar sem sítio, e assim vagueia pelo passeio abaixo e acima, na rua. Encontrámo-lo lúcido, mas apreensivo com o que está a acontecer, para além de não conseguir dormir por o lugar onde está ser inclinado. Falámos-lhe então da hipótese de ir para uma habitação. Estando há tantos anos na rua, e à espera de uma resposta negativa, surpreendeu-nos com um sim, tal o medo que sente neste momento. Dissemos-lhe que, sem compromisso, iremos ver as possibilidades. No final, oferecemos-lhe um chá quente, que agradeceu com um sorriso a que já nos habituou, e que nos aquece o coração. Disse-nos que tinha sido uma boa ideia. Despedimo-nos.
Para terminar, rumámos até junto do J. Outro rapaz novo, também toxicodependente, que na semana passada fez anos, mas que não encontrámos. Desta vez sim, demos-lhe os parabéns, e ele brindou-nos com a notícia de que se inscreveu no programa da metadona. Já será um começo. O J. é de Estarreja, fez 31 anos, e até há algumas semanas estava acompanhado de um irmão, também visitado por nós naquele mesmo sito, o L, mais velho, e que presentemente está preso em Aveiro por acumulação de multas de comboio sem pagar. "Pecados" inevitáveis devido ao sorvedouro de dinheiro que é canalizado para uma dependência sempre acima de necessidades básicas como alimentação ou transporte para visitar a família. Ambos ainda a têm em Estarreja. Perguntamos ao J. pelas suas filhas que lá estão, e disse que as visitou no seu dia de anos. Aqui sentimos que não são muitas mais as ferramentas que temos, que a nossa presença e o nosso conselho são praticamente o que de melhor podemos fazer. O mais importante terá que ser feito por eles.
No fim da noite, encontramos outro caso semelhante ao do J. Trata-se do P., com 36 anos, que costuma andar nas suas lides de arrumador também por aqueles lados. Uma personalidade mais complicada de entender, mas que mesmo tendo a noção de que nem tudo o que diz é exacto, sabemos que a nossa presença pode ajudar a alterar alguns comportamentos, e quem sabe, como uma gota num regato, encaminhar para uma mudança que poderá ocorrer mais cedo ou mais tarde, mas que não podemos prever.
Até Domingo.
Francisco

3 comentários:

Unknown disse...

tens bem razão, Francisco... Basta querermos e tentarmos que conseguimos! Estar com as pessoas da rua é tão mais fácil do que pensamos...
Um beijinho Maria*

Anónimo disse...

Admiro-vos quer pela vossa força de vontade, quer pela vossa dedicação de corpo e alma.
Acredito que sois uns anjos da guarda que têm a coragem de dar uma mão. :)
Bjs para todos

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.