O clássico e a maratona
O Verão do São Martinho - que ainda não foi - é já uma memória vaga. O frio voltou e saiu à rua para compassar mais uma ronda de domingo à noite. Afina-se a conversa pelo diapasão do clássico Porto x Benfica da noite. Alinham-se o pão, os doces, os salgados. Abrem-se os sacos. Metem-se abraços lá dentro. Os nossos são feitos de géneros.
A caravana parte pelas ruas de sempre. Na primeira paragem a conversa faz-se à mesa. O bolo deitado na mesa não chega para adoçar o desabafo. Cheira a caldo verde. As novidades desfiadas têm rugas cada vez mais carregadas. Ouvimos. O lamento convoca a nossa opinião. Dada. Debatida. Por hora vencida pelo rame-rame dos dias. Tão avessos são à mudança.
Seguimos atrasados para a Loja do Cidadão. Esperam-nos duas visitas. Tolhidas pelo frio. O clássico terminou por ali. Não há bandeiras, nem adeptos. Só os protagonistas de dois campeonatos mais pautados por derrotas e empates. São dos que ainda vão a jogo. Mesmo sem táctica nem técnica, uma mostra-se disposta a jogar para a goleada. O outro mostra-se disposto. Nem que seja para cumprir calendário. Gira a bola…
Já na Areosa, cumprimos a penúltima paragem. Num caixote, onde à vista desarmada não caberia mais do que uma criança de 10 anos, mora mais uma visita. Dorme. Acorda. Bebe uma sopa quente. Fala do RSI que ainda não tratou. Do almoço de domingo que alguém ofereceu. E do casaco. Limpa o líquido que lhe sai dos olhos com os restos de um toalhete de gasolineira. Estendemos um lenço de papel. Gesto macio. Dá conta da falta de um elemento no grupo. Dá conta das horas, como se o tempo se tivesse esgotado. Diz que é o nosso. Será o dela também. Por esta noite. Só por esta noite. Até para a semana.
A ronda chega à última paragem. Dos três, um fica sem dar sinal de vida. O do lado insulta-o. Explica, para quem quiser ouvir e entender, que é um gesto amigo. Como todos os que tem. É honesto, frontal e duro. Como a guerra. E isso basta. Para ele basta. Para os outros devia bastar também. Pede leite e pão. O tom grosso empareda aquele espaço. De repente estamos na sua casa, a ouvir as suas histórias, as suas sentenças, as certezas que tem do mundo onde nada nem ninguém lhe escapa. E ali, naquela casa improvisada, manda quem fala mais alto.
São duas da manhã. Quase a chegar a casa. Muitas horas antes, na manhã desse domingo em que o Verão do São Martinho - que ainda não foi - se tornou uma memória vaga, participei numa corrida. Quando acabou, pensei na próxima, não nos que ficaram para trás. E quantos ficaram? Quem deve marcar o ritmo? Como se faz de lebre no mundo real? Perigosa a distância que nasce para os que se atrasam. Tentador continuar a correr sempre. Até nos perdermos de vista. E coração que não vê…
Filipa Silva
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